Sítio do Piropo

B. Piropo

< Jornal Estado de Minas >
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24/04/2003

< Imprimindo com a cabeça >


A impressão a jato de tinta se baseia no lançamento de gotículas de tinta sobre o papel. Essas gotículas são geradas pela “cabeça de impressão” e lançadas na quantidade exata para imprimir minúsculos pontos que, combinados, gerarão a imagem impressa. A cabeça de impressão se desloca em constante vai-e-vem acima de um dispositivo de tração que faz a folha de papel deslizar abaixo dela. Desta forma a cabeça percorre toda a superfície da folha. A impressão em preto é gerada por um cartucho com uma única cabeça que expele tinta preta. Já impressão colorida é feita pela mistura, na proporção correta, de gotículas das três cores básicas “subtrativas”: ciano, magenta e amarelo (percebemos a cor impressa pela luz que se reflete no papel; nos monitores, a cor é formada pela luz emitida pelo próprio monitor, que por isso usam uma mistura de cores básicas “aditivas”: vermelho, verde e azul). As impressoras modernas conseguem formar tonalidades sutilmente diferentes usando a técnica denominada “meios tons” (“halftoning”) que ejeta um número variável de gotículas de cada cor, na exata proporção da influência da cor básica na formação da tonalidade desejada.
Essa técnica denomina-se “drop on demand” (DOD). Para gerar as gotículas são usados dois tipos de tecnologia. A mais antiga é a piezoelétrica, que tira proveito do chamado “efeito piezoelétrico” observado em alguns cristais que, quando se deformam pela aplicação de uma dada pressão, produzem uma diferença de potencial elétrico; e quando submetidos a uma certa diferença de potencial se deformam, produzindo uma pressão. Cabeças de impressão que usam essa tecnologia consistem em centenas de pequenas câmaras cheias de tinta, com uma das paredes formadas por um cristal piezoelétrico e um minúsculo orifício na parede oposta. Para gerar a gotícula, aplica-se uma certa diferença de potencial elétrico ao cristal, que se deforma e comprime a tinta, o que faz com que uma gota microscópica seja expelida pelo orifício e lançada sobre o papel. A contração do cristal quando cessa a pressão suga mais tinta do depósito para encher a câmara. A única empresa que emprega essa tecnologia é a Epson. Como as cabeças de impressão piezoelétricas são mais caras e duram mais, elas integram a própria impressora. O cartucho de uma impressora a jato de tinta Epson, portanto, é apenas um reservatório de tinta. O resultado prático disso é que, se um ou mais das centenas de bocais da cabeça de impressão de uma Epson a jato de tinta sofrer uma obstrução irreparável, a impressora está inutilizada (é claro que sempre se pode substituir a cabeça, mas isso costuma ser economicamente inviável, já que o custo da cabeça e da mão de obra geralmente é igual ou maior que o preço de uma nova impressora).
As demais fabricantes de cabeças de impressão a jato de tinta para impressoras não industriais, HP, Canon e Lexmark, adotam a tecnologia térmica (há outras marcas de impressoras que não fabricam suas cabeças, mas compram de um desses três fabricantes; a Dell, por exemplo, que acaba de ingressar nesse mercado, usa cabeças e impressoras fabricadas pela Lexmark; as demais marcas que usam a tecnologia térmica e fabricam suas cabeças são a Olivetti e Océ, mas suas impressoras não são destinadas ao uso doméstico).
HP e Canon disputam o pioneirismo desta tecnologia. Mas a Canon, que a batizou de “bubblejet”, pelo menos conta uma historinha para ilustrar: diz ela que a idéia surgiu em 1977 quando um de seus pesquisadores encostou acidentalmente um ferro de soldar em uma seringa cheia de tinta fazendo com que a dilatação da tinta, ao esquentar, fizesse jorrar uma gota pelo bico da seringa. Essa é de fato a idéia básica: uma cabeça de impressão térmica é formada por câmaras cheias de tinta, cada uma com um resistor em seu interior, denominado “ativador”. No lado superior as câmaras se comunicam com o reservatório de tinta do cartucho e no lado inferior, de frente para o papel, têm um pequeno orifício denominado “bocal”. Para gerar uma gota, aplica-se uma corrente elétrica ao ativador, que se aquece até uma temperatura elevadíssima por uma fração de milésimo de segundo, fazendo a tinta entrar em ebulição e expulsar uma gotícula pelo bocal. O vácuo formado quando a temperatura se reduz suga tinta do reservatório, enchendo novamente a câmara.
Dito assim, parece simples. Mas a evolução da tecnologia fez a coisa se complicar um bocado. Para começar, o processo é tão rápido que são expulsas cerca de cinco mil gotículas a cada segundo. E o termo “gotícula” não é exagero: as cabeças de impressão de última geração da Lexmark são capazes de produzir gotas de apenas três picolitros (um picolitro corresponde a um trilionésimo de litro, ou seja, em apenas um centímetro cúbico há mais de trezentos milhões dessas gotas). Não há interesse em produzir gotas menores, já que elas não serão visíveis a olho nu.
Para gerar gotas pequenas assim são necessários bocais e câmaras minúsculos. De fato cada bocal tem um diâmetro de cerca de oito micra (oito milésimos de milímetro, menos de um terço da espessura de um fio de cabelo – dos finos) e as câmaras não são muito maiores do que isso. Para criá-las são usadas ferramentas laser de precisão que perfuram um chip que contém, além das câmaras e bocais, os ativadores e todo o circuito lógico necessário para enviar os pulsos elétricos exatamente aos ativadores certos no momento exato. Uma cabeça de impressão a jato de tinta é uma jóia da tecnologia moderna.
A vantagem da tecnologia térmica é que os cartuchos, além da tinta, trazem também uma cabeça de impressão. Se um dos bocais sofrer uma obstrução irreparável, tudo o que se perde é um cartucho, já que o substituto vem com uma cabeça novinha em folha. Em contrapartida, ao terminar a tinta do cartucho, joga-se fora uma cabeça de impressão ainda em perfeitas condições de funcionamento. A não ser, é claro, que se introduza no cartucho uma nova carga de tinta.
Mas é aí que a porca torce o rabo. Porque um cartucho recarregado pode até ser perfeitamente funcional. Mas nem sempre produzirá uma impressão com a qualidade da gerada por um novinho em folha. Me convenci disso após visitar uma fábrica de cartuchos e cabeças. Na verdade, duas: uma que produz os circuitos das cabeças de impressão, outra que monta os cartuchos. Logo veremos as razões.
A principal matéria prima da primeira fábrica são “wafers” fornecidos por um fabricante de circuitos integrados, uma placa circular de seis polegadas de diâmetro com algumas centenas de circuitos lógicos. Cada um deles contém toda a eletrônica necessária para operar uma cabeça de impressão. O primeiro passo é testar cada circuito, marcar os defeituosos e cortar o “wafer” usando uma tecnologia de corte a laser de precisão. O resultado são centenas de chips (circuitos integrados) “cegos”, ou seja, sem câmaras ou fendas. A partir desse ponto, todo o trabalho é feito em um conjunto de salas limpas. Na verdade, trata-se de um galpão dentro de outro galpão. O ar do galpão externo é apenas filtrado. O do galpão interno sofre uma segunda filtragem que garante a presença de menos de cem partículas de poeira por metro cúbico (há alguns bilhões delas no ar que respiramos) e cujas temperatura e umidade são rigorosamente controladas. Nele, usando ferramentas a laser de altíssima precisão, são escavadas as fendas, câmaras e bocais nos minúsculos circuitos, transformando-os em cabeças de impressão. Em seguida, usando a técnica de ultra-som, cada cabeça é soldada a um circuito impresso sobre uma película flexível com todas as conexões necessárias para ligá-la aos circuitos de controle da impressora. Uma cabeça de impressão de um cartucho de três cores tem centenas de bocais. A de um cartucho de tinta preta, pouco mais de cem. A fabricação em salas limpas é necessária porque uma única partícula de poeira alojada em um bocal inutiliza a cabeça.
O resultado é um circuito impresso flexível que contém a cabeça e todas as conexões elétricas necessárias, como o da figura (que mostra frente e verso de um circuito impresso com uma cabeça de impressão para tinta preta). Na primeira fábrica são gerados mais de um milhão de circuitos por semana. Seu produto são centenas de carretéis, semelhantes a rolos de filme de 35 mm, embalados a vácuo e hermeticamente fechados. Cada um deles contém milhares de circuitos impressos que são enviados à fábrica de cartuchos (veja fotos de detalhes de cabeças que usam a tecnologia térmica na página
<http://www.microscopy-uk.org.uk/mag/artjan99/inkjet.html>).
Nela, são montados os cartuchos. O primeiro passo é a preparação da tinta em uma instalação onde corantes especiais são dissolvidos em água tratada e filtrados para garantir a ausência total de partículas, mesmo microscópicas, que poderiam obstruir os bocais. Essa é a única fase executada fora de salas limpas. A partir desse ponto os cartuchos recebem o circuito com as cabeças, um conjunto de filtros internos constituídos por uma tela de aço inox com aberturas de dez micra para reter quaisquer partículas eventualmente presente na tinta e um “recheio” de espuma plástica que será saturada com a tinta (é por isso que pode-se sacudir à vontade um cartucho meio vazio que não se percebe o “chacoalhar” da tinta em seu interior, contida pela espuma; a espuma é necessária para evitar vazamentos de tinta). Somente então a tinta é injetada no cartucho. Todos os cartuchos, sem exceção, são testados veja, na foto, um técnico acompanhando os testes, com dois cartuchos refugados sobre a mesa e repare nas vestes especiais para ingressar na sala limpa) e somente se considerados perfeitos são embalados à vácuo e empacotados. Apenas então deixam o conjunto de salas limpas em caixas fechadas. Com exceção dos testes e de alguns procedimentos de embalagem, todos os processos são executados sem interferência humana – embora minuciosamente supervisionados.
Então, voltemos aos cartuchos recarregados e “remanufaturados”. Começando pelos primeiros.
Se você comprou um cartucho novo e a tinta terminou, pode recarregá-lo. O problema está na tinta. Dificilmente ela será da mesma qualidade que a usada na carga original. É provável que contenha impurezas, partículas microscópicas em suspensão que acabam por obstruir os filtros internos do cartucho ou os bocais. Ou que seque mais lentamente, o que acaba por provocar borrões se o papel for manipulado imediatamente após sair da impressora. Tudo isso pode prejudicar a qualidade da impressão. Mas se você estiver ciente disso e se contentar com uma impressão não tão perfeita quanto a do cartucho original, nada o impede de recarregar seus próprios cartuchos. E se a recarga não ficar satisfatória, o prejuízo é nenhum: sem a recarga, o cartucho estava mesmo perdido... Eu costumo recarregar os meus. Evidentemente, mesmo que você tenha a sorte de conseguir uma tinta de boa qualidade que não obstrua nem os filtros internos do cartucho nem os bocais da cabeça, há um limite de recargas. Pois a qualidade da impressão depende da precisão com que são geradas as gotículas que são expelidas em alta temperatura através de orifícios microscópicos em uma placa de plástico. E não há plástico que resista indefinidamente a isso. Com o tempo, os bocais vão se deformando e a impressão fica inaceitável. Para meu uso particular, com tinta de boa qualidade, considero três recargas o máximo compatível com uma impressão decente. Daí em diante, cartucho novo.
Já no que toca aos cartuchos ditos “remanufaturados”, a coisa é diferente. Em geral o termo “remanufaturado” não é sinônimo de “recuperado”, mas de fabricado por terceiros. Aí, não é apenas a qualidade da tinta a ser questionada, mas a dos cartuchos. Custa crer que um fabricante não licenciado possa manter os mesmos cuidados do fabricante de cartuchos originais. Construção e manutenção de salas limpas custam fortunas. Por isso, no que me diz respeito, procuro evitar esse tipo de cartucho. Como evito igualmente os cartuchos recarregados comprados de terceiros. Os meus, eu sei quantas vezes usei e posso descartá-los após a terceira recarga. Os da terceiros, como saber?
PS: As fábricas visitadas à convite da empresa foram da Lexmark, ambas no estado de Chihuaha, no México. A de cartuchos, na capital, Chihuaha. A de cabeças, em Ciudad Juarez, próxima à fronteira com os Estados Unidos. Ambas usam as facilidades concedidas pelo governo mexicano para as chamadas indústrias “maquiladoras” (cujo nome nada tem a ver com “maquilagem”, mas sim com o termo “maquila”, regionalismo mexicano usado na agricultura, que designa um arranjo segundo o qual o dono da terra tem direito a uma parte da produção cultivada por terceiros). O sistema foi criado na década de sessenta. Originalmente, as maquiladoras eram obrigadas a se situar a menos de dez milhas da fronteira americana e podiam importar matéria prima e componentes sem pagar impostos, desde que toda a produção fosse exportada. Com o advento do NAFTA as regras foram modificadas. Hoje continuam isentas dos impostos de importação, mas podem se situar a qualquer distância da fronteira e somente uma parte da produção deve obrigatoriamente ser exportada. Atualmente há mais de três mil maquiladoras no México, que geram cerca de um milhão de empregos e são responsáveis por 45% das exportações do país. A Lexmark foi criada há dez anos, a partir do desmembramento do setor de impressoras da IBM. Suas fábricas de Chihuaha e Ciudad Juarez produzem os cartuchos comercializados nas três Américas: do Norte, Central e do Sul. Inclusive os vendidos no Brasil.

B. Piropo