Sítio do Piropo

B. Piropo

< Jornal Estado de Minas >
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17/07/2003

< GGG >


Você espeta seu computador na tomada, liga o bicho e pouco depois põe-se a trabalhar. Para a máquina, não importa se você está redigindo uma tese de doutorado sobre física quântica ou ouvindo um MP3 da Eguinha Pocotó: sua faina é sempre a mesma, processar dados (e por paradoxal que pareça, permitir que você ouça a Eguinha Pocotó exige mais dela que editar sua tese).
Pense um pouco: a capacidade de processamento da máquina você sabe que vem de seu microprocessador, ou CPU. Mas a energia que a alimenta, vem de onde?
Para você, pouco importa. Tudo o que você quer é que seu micro funcione, suas lâmpadas acendam, sua geladeira gele e seu forno elétrico esquente. Mas para além de sua tomada jaz um notável sistema de distribuição, uma intrincada malha que permite transportar até o Rio Grande do Sul a energia gerada em Paulo Afonso quando sobra no Nordeste e derivar para o Maranhão a energia gerada em Itaipu quando cai o consumo no Sudeste. Em resumo: esteja você onde estiver, seu micro pode receber energia de qualquer parte do Brasil. E em questão de minutos a fonte pode ser alterada por um sofisticado sistema de gerenciamento que está sempre monitorando oferta e demanda e encaminhando a energia de onde está sobrando para onde está faltando. Sistemas em malha (“grid systems”) funcionam assim.
Mas voltemos a seu micro. E ao meu. Imagine que você está conectado à Internet enquanto ouve a Ária da Corda de Sol, digitaliza uma foto, examina um vídeo e edita um pesado arquivo gráfico. Enquanto isso eu, também conectado à Internet, estou aqui batucando em meu teclado essas mal traçadas. Sua máquina, coitada, mal dá conta do recado e parece funcionar em câmara lenta, tal a demanda sobre sua CPU. A minha, enquanto isso, leva uma tremenda boa vida processando as parcas idéias que gotejam lentamente de meus cansados neurônios. Quer dizer: sobra capacidade de processamento aqui enquanto falta aí. Que tal “chupar” através da Internet um bocado de ciclos de máquina de minha CPU para aliviar a labuta da sua? Como aqui há capacidade de sobra para a tarefa que está sendo executada, eu nem sequer perceberia. Mas você notaria claramente a diferença no desempenho de seu micro.
Se nossas máquinas estivessem ligadas em malha (“grid”), isso não somente seria possível como perfeitamente natural. Desviar capacidade de processamento de máquinas “folgadas” para suprir a demanda das assoberbadas seria tão simples como desviar energia nos sistemas de distribuição em malha. Saber a origem da capacidade de processamento seria tão irrelevante quanto saber de onde vem a energia. O sistema simplesmente distribuiria, via Internet, a capacidade de processamento de onde estivesse sobrando para onde estivesse faltando. E como as máquinas estariam conectadas em todo o planeta, sempre haveria algumas com capacidade sobrando nas altas madrugadas americanas para suprir a demanda dos micros funcionando no febril horário comercial asiático. Ou nas madrugadas asiáticas e horário comercial europeu. E assim por diante.
Parece um sonho? Pois não é. A interconexão maciça de processadores é uma tecnologia emergente em pleno desenvolvimento. Chama-se “grid computing” (computação em malha) e há diversas organizações, privadas, acadêmicas e governamentais, ativamente empenhadas em seu desenvolvimento. Em uma delas, o GRID Infoware, ou Grid Computer Information Centre (<www.gridcomputing.com/>), uma organização dirigida pelo Dr. Rajkumar Buyya, encontra-se farta documentação sobre o assunto. Em outra <http://swradio.omg.org/workshop/ref/Grid.htm>), uma página hospedada no sítio do OMG (Object Management Group), há uma rica coleção de atalhos (“links”) para sítios exclusivamente dedicados ao tema.
Mas afinal, o que é exatamente “grid computing”? Segundo o Dr. Buyya, “Grid é um tipo de sistema paralelo e distribuído que permite o compartilhamento, seleção e agregação de recursos ‘autônomos’ geograficamente distribuídos, de forma dinâmica e em tempo de execução, em função da disponibilidade, capacidade, desempenho, custo e necessidades de ‘qualidade-de-serviço’ do usuário”. Uma definição tecnicamente irrepreensível mas um tanto complicada. Simplifiquemo-la, pois: “Grid é um jeito de desviar capacidade de processamento de máquinas onde ela sobra para máquinas onde ela falta na hora em que ela é necessária”. Assim ficou mais fácil. E se você quiser uma explicação detalhada, baixe o artigo “The Anatomy of the Grid” de Foster, Kesselman e Tuecke em <www.globus.org/research/papers/anatomy.pdf> e divirta-se.
Embora revolucionária, a idéia não é nova. Nasceu há cerca de dez anos, quando pesquisadores perceberam que os cálculos exigidos por seus trabalhos acadêmicos demandavam caríssimos supercomputadores enquanto a seu redor havia centenas, talvez milhares de máquinas burocraticamente sub-utilizadas. Por que não lançar mão de todo esse poder de processamento? E começaram a buscar formas de fazê-lo (veja o artigo de Emmanuelle Delsol em <www.01net.com/article/205794_a.html>).
O pioneiro foi o laboratório de Argonne, em Illinois, EUA, que se dedicou a pesquisar meios para identificar recursos e suas disponibilidades, formas de acesso a esses recursos, ordenamento de solicitações, taxas de transferências, em suma, as bases elementares para o estabelecimento de uma malha de computação. De seus esforços nasceu o Globus Project (<www.globus.org/>) que desenvolveu o Globus Tooklit, primeiro software capaz de gerenciar uma malha de computadores, hoje na versão 3.0. Depois, a ele se juntaram gigantes do porte da IBM, HP e Sun. E a coisa foi para a frente.
A computação em malha (“grid computing”) já é uma realidade em algumas corporações, universidades e agências governamentais, particularmente as americanas. Lá, os ministérios de Defesa e Energia e a NASA foram os pioneiros, interconectando 21 centros de pesquisas em uma única malha. O resultado foi a possibilidade de entrar em um conglomerado de mais de mil processadores compartilhando recursos. Há dois anos, a indústria de medicamentos Bristol-Myers Squibb testou uma plataforma piloto de computadores em malha e o First Union National Bank, na Carolina do Norte, EUA, já está usando computadores em malha para seu processamento financeiro. E hoje existem empresas como a IBM, Sun e Platform Computing dedicadas a estabelecer sistemas locais em malha que exibem uma carteira de centenas de clientes. Mas ainda há obstáculos a serem vencidos.
Um deles, absolutamente vital, é a necessidade de padronização. E nem é preciso explicar a razão pela qual ela é tão importante: basta lembrar que o objetivo é interligar em nível planetário alguns milhões de máquinas usando diferentes sistemas operacionais em diferentes redes. Por isso espera-se que ainda esse ano venha à luz a OGSA, Open Grid Services Architecture, para pôr ordem no caos. Uma ordem baseada em um princípio singelo: criar as bases de um ambiente no qual as funções de um sistema em malha sejam tratadas como “web services”.
Não sei se você percebeu os desdobramentos disso. Mas certamente perceberá quando souber que um dos maiores interessados no assunto é o W3C (World Wide Web Consortium, em <www.w3c.org/>), a instituição dedicada ao desenvolvimento da Internet.
E porque será que o W3C estaria tão interessado? Simples: hoje em dia a computação em malha está voltada para o aumento da produtividade de corporações, otimizando seus recursos. Mas assim que forem vencidos obstáculos como o estabelecimento de sólidos critérios de segurança, as baixas taxas de transferência atuais e o ordenamento de prioridades de acesso, o amadurecimento dos padrões de grid computing transformará a atual WWW na GGG, ou Great Global Grid, uma imensa malha global que se comportará como um descomunal computador.
Ela será uma coisa só, uma supermáquina que transferirá maciça e instantaneamente capacidade de processamento de onde ela estiver sobrando para onde ela for necessária e transformará cada micro ligado a ela na porta de acesso a um supercomputador.
Não é coisa para já. Os mais otimistas falam em dez anos. Para os pessimistas, é coisa de vinte ou mais. Mas ninguém duvida que a GGG está prestes a nascer.
É esperar para ver. E se maravilhar. Ou apavorar, dependendo de seu grau de paranóia...

B. Piropo