Sítio do Piropo

B. Piropo

< Jornal Estado de Minas >
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03/03/2005

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o computador somos nós >


Um campo elétrico é um negócio curioso. Ele nada mais é que a influência de uma carga elétrica sobre o espaço que a circunda. Poderemos considerá-lo análogo a um campo gravitacional. A simples existência de uma certa massa cria em torno dela um “campo de força” capaz de atrair outra massa, conforme demonstrou Isaac Newton quando, reza a lenda, teve seu merecido repouso embaixo de uma macieira rudemente perturbado pela abrupta queda de uma maçã sobre seu ilustre cocuruto. Um mané qualquer simplesmente praguejaria e buscaria um lugar mais sossegado para esticar a soneca. Mas Newton era um gênio e gênios pensam diferente. Em vez de resmungar, pôs-se a cogitar sobre as razões que levaram a natureza a perturbar seu sono e acabou descobrindo que “a matéria atrai matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado da distância” como, hoje, sabemos todos. Ou seja: a Terra e a maçã se atraem porque ambas são corpos dotados de massa. Não existe nada ligando Terra e maçã, exceto o “campo gravitacional”.

Pois bem: algo muito parecido acontece com cargas elétricas. Cada uma delas cria em torno de si um “campo elétrico”. Como existem cargas positivas e negativas, o campo faz com que elas se atraiam se forem opostas (uma positiva, outra negativa) e se repilam se forem iguais. Fora isso, as noções de campo elétrico e campo gravitacional são análogas. Resumindo: colocar uma carga elétrica no interior de um campo elétrico gerado por outra faz com que seja criada uma força de atração – ou repulsão – (elétrica) entre elas da mesma forma que colocar um corpo no campo gravitacional de um planeta cria uma força de atração (gravitacional) entre eles. Complicado? Então esqueça. Basta lembrar que, da mesma forma que vivemos no interior de um imenso “campo gravitacional” gerado pela Terra, vivemos também no interior de diversos campos elétricos formados por uma imensidão de cargas elétricas que nos circundam.

Até mesmo nosso corpo gera um campo elétrico, já que acumula cargas elétricas. Acha estranho? Pois qualquer pessoa que já tenha caminhado sobre um tapete em um local de clima frio e seco e depois tentado tocar uma maçaneta metálica sabe disso: a carga da eletricidade estática (gerada pelo atrito dos pés no tapete) que se acumula no corpo da vítima e não se dissipa na atmosfera seca é tão grande que, quando sua mão se aproxima da maçaneta, cujo potencial elétrico é mais baixo, produz uma descarrega elétrica sob a forma de uma faísca entre mão e maçaneta. Para quem sempre viveu em climas tropicais, onde a umidade do ar não deixa cargas elétricas elevadas se acumularem em nosso corpo, parece difícil de acreditar. Mas, creia, a faísca é de proporções razoáveis e, além do susto medonho que dá nos incautos brazucas a ela desacostumados, incomoda um bocado. É um choque, em ambos os sentidos (também os técnicos em eletrônica sabem da existência desse campo elétrico em nosso corpo; tanto assim que os mais sensatos usam uma pulseira metálica aterrada; esse estranho adereço serve para descarregar para a terra as cargas elétricas eventualmente acumuladas no corpo, evitando a “queima” de delicados circuitos integrados ao se tocar em seus terminais com o corpo carregado de eletricidade estática). Em suma: seja de maior ou menor intensidade, há sempre um campo elétrico em torno de nosso corpo.

Até aí, tudo bem. Acho que isso não é novidade para a maioria de meus 58 leitores, elite minúscula porém aguerrida da qual você faz parte.

Mas usar nosso corpo como parte integrante de uma rede de computadores, a HAM, de Human Area Network, eu aposto que é novidade até para esta preclara minoria. Pois não somente tal novidade é possível como já há uma corporação dedicada à sua implementação, a NTT Co (Nippon Telegraph and Telephone Corporation), empresa de comunicações sediada no Japão.

A designação Human Area Network (mal traduzindo: rede de alcance do corpo humano) foi forjada a partir de WAN (Wide Area Network, rede de amplo alcance) e LAN (Local Area Network, rede de alcance local) e designa a comunicação no “último metro”, ou seja, entre dispositivos que estão a menos de um metro do corpo do usuário.

A tecnologia foi batizada de “RedTacton”. Segundo seus pesquisadores, “RedTacton é a nova tecnologia de Human Area Network que usa a superfície do corpo humano como um meio de transmissão seguro e rápido” (veja em < www.redtacton.com/en/info/index.html >). A transmissão é feita através do campo elétrico que se forma em torno do corpo humano e se inicia no momento em que parte do corpo do usuário entra em contato com um dispositivo transmissor/receptor RedTacton. Qualquer parte do corpo serve para estabelecer contato: mãos, dedos, braços, pés, rosto, pernas ou tronco. E não é necessário contato direto: o sinal pode se propagar através de roupas ou calçados.

O funcionamento da tecnologia é simples (ver figura). Agindo como transmissor, o dispositivo transmissor/receptor RedTacton em contato com o corpo do usuário recebe o sinal de um dispositivo portátil e gera um fraco campo elétrico na superfície do corpo, fazendo esse campo variar em consonância com o sinal recebido. Um segundo dispositivo RedTacton, agindo como receptor e também em contato com o corpo do usuário, capta essas variações e as encaminha a um cristal eletro-ótico, cujas propriedades óticas variam de acordo com as mudanças do campo elétrico. Esse cristal é atravessado por um raio laser, cuja intensidade muda de acordo com as variações das propriedades óticas do cristal. Esse raio é finalmente capturado por um circuito receptor ótico que reconstitui o sinal original a partir das variações de intensidade do raio laser e o encaminha a um segundo dispositivo portátil. Assim, informações são transferidas entre os dois dispositivos empregando o corpo do usuário como meio transmissor. Já existem diversos tipos de transmissores/receptores RedTacton, fabricados ainda sob a forma de protótipos, como o mostrado na foto, que usa um cartão PC Card para se conectar ao dispositivo portátil (veja outros em < www.redtacton.com/en/prototype/index.html >).

Dá medo? Perturba-lhe a idéia de ter seu corpo percorrido por um sinal elétrico? Tranqüilize-se. Querendo ou não, seu corpo é naturalmente portador de campos elétricos gerados pela fricção da roupa sobre ele, do atrito de seus pés no solo ao caminhar, do corpo no tecido ou madeira dos assentos. Em suma: campo elétrico não falta. E a intensidade do campo gerado pela tecnologia RedTacton é muito inferior à da maioria deles. Além do que o campo será sempre dissipado para a terra através de seus pés.

Segundo a NTT as possibilidades da tecnologia são enormes. Dois indivíduos, cada um equipado com um dispositivo RedTacton, podem trocar informações entre seus computadores portáteis (handheld computers, como os Palm) através de um simples aperto de mão. E uma enorme variedade de ações, como segurar, sentar-se, caminhar ou simplesmente ficar parado em um determinado local pode iniciar o processo de intercâmbio de dados. Um dispositivo RedTacton pode estar no bolso do usuário, outro no chão onde ele pisa (como mencionado, o sinal é capaz de se propagar através de calçados e tecidos) e ainda assim os computadores aos quais estão ligados podem se comunicar. E como a transmissão se dá através de variações de um campo elétrico, ela pode se estender além do corpo do usuário através de mesas, cadeiras, paredes, maçanetas, piso, desde que sejam feitos de material condutor ou dielétrico. Um dispositivo RedTacton pode ser instalado, por exemplo, em uma porta que dá acesso a um local que exige identificação do visitante. O simples ato de tocar a maçaneta inicia uma comunicação que permite não somente identificar o usuário como também registrar dados como horário de entrada ou saída, liberando ou não a passagem de acordo (veja artigo da NTT em < www.ntt.co.jp/news/news05e/0502/050218.html#4 >).

Pois é isso. A evolução da tecnologia nunca para de nos surpreender (original, isso, nénão?). Há alguns anos, tentando fazer as corporações entenderem a verdadeira importância da interconexão de computadores, a Sun cunhou o slogan “O computador é a rede”. Agora, a tecnologia RedTacton vem nos integrar à própria infra-estrutura da rede.

Resultado: o computador somos nós...

 

B. Piropo