Sítio do Piropo

B. Piropo

< Jornal Estado de Minas >
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01/12/2005

< Formatos Abertos >


Sair sem lenço e sem documento é muito poético desde que você não encare uma batida policial. Então perceberá que documentos são, efetivamente, essenciais. E isso desde que nascemos, haja vista a importância da certidão de nascimento. Sem ela, sequer existimos oficialmente.
Mas documentos não são apenas papéis oficiais. Uma carta para a namorada pode ser um documento importantíssimo. Um bilhete de despedida é um documento. E até mesmo uma lista de compras pode ser um documento. Afinal, e está aí o Houaiss para não me deixar mentir, documento é “qualquer escrito usado para esclarecer determinada coisa”. E nem precisa ser impresso. Na verdade, nesses tempos eletrônicos, nem mesmo um meio suporte como o papel é imprescindível. Não é à toa que os editores de textos, planilhas eletrônicas e outros aplicativos chamam seus arquivos de “documentos”. Isto, que você está lendo no jornal, é um documento. Que breve estará disponível em meu sítio da Internet, em < www.bpiropo.com.br >, em formato eletrônico e nem por isso deixará de ser um documento. E mesmo agora, enquanto o estou digitando em um editor de textos, já é um documento.
Pois bem: alguns documentos, como artigos de jornal, são destinados a uma vida efêmera. A edição do dia seguinte trará novas informações, as de hoje perderão importância e em um par de dias ninguém se lembrará delas. Já outros, como certos documentos oficiais, sobretudo os que adquiriram alguma importância histórica, idealmente deveriam ser perenes. Um bom exemplo é a Pedra de Roseta. Foi encontrada em 1799 por soldados franceses na cidade de Rashid (que, em inglês, virou “Rosetta”) mas foi escrita muito antes, há dois mil e duzentos anos (2201, para ser exato) para divulgar um decreto de Ptolomeu V, gravado em dois diferentes idiomas, grego e egípcio, o que permitiu a Champollion decifrar os hieróglifos. Não é, portanto, um documento qualquer. E por isso mesmo permanece até hoje no Museu Britânico. Como se pode constatar na foto, no mais perfeito estado apesar da idade.

Pedra de Roseta
Figura 1 - Pedra de Roseta

Mas nem todo documento precisa ser gravado em pedra para perdurar. Veja a Lei Áurea, por exemplo. Foi assinada há quase cento e vinte anos, mas olhando para ela, aí na foto, ninguém diz. Parece uma menina... E, dada a importância que representou para esse país, é bom que assim seja.

Pedra de Roseta
Figura 1 - Lei Áurea

Agora, diga-me lá: como seria se ela tivesse sido criada usando, digamos, o WordStar ou, quem sabe, o Carta Certa (lembram deles?) e ninguém tivesse se dado ao trabalho de imprimi-la? Como consultar, hoje em dia, um documento de tamanha importância?
Na verdade esse problema aflige hoje quase todo o mundo que usa um computador há mais de dez anos. Eu mesmo, se fuçar meus guardados, vou descobrir arquivos criados em cinco ou seis editores de textos diferentes, incluindo o WordStar e o Fácil. Se Champollion precisasse deles para decifrar alguma coisa iria ter um trabalho medonho, já que cada arquivo foi gravado no “formato” usado pelo editor que o criou.
Isso porque o arquivo de cada documento gerado por um editor de texto incorpora, além do texto, códigos referentes à “formatação” do documento, como tipo e tamanho de fonte, espaçamento entre linhas e parágrafos, trechos em negrito, itálico e sublinhado, enfim, uma enorme quantidade de informações necessárias para exibir o documento na forma em que foi concebido. E como cada editor de texto usa códigos diferentes para seus formatos, arquivos criados por uns são completamente ininteligíveis para outros. Se você tiver sorte, conseguirá um programa “conversor de formatos”, que transformará os códigos usados pelo editor que criou o arquivo naqueles usados pelo editor no qual você pretende editá-los. Se não, terá um nas mãos um abacaxi. E um abacaxi de proporções razoáveis.
Ora, se o problema incomoda a meras pessoas físicas como eu, o que não dizer de órgãos governamentais, que estão cada vez mais informatizados e arquivando documentos digitalizados em uma taxa jamais antes vista? Pois justamente com essa preocupação em mente o Governo do Estado de Massachussetts, nos EUA, decidiu tomar uma providência: nomear uma comissão para padronizar os formatos dos documentos gerados e recebidos por todos os órgãos subordinados à administração estadual. E essa Comissão, em 23 de setembro último, chegou a um consenso que consta do documento “Enterprise Technical Reference Model - Version 3.5”, disponível em
< www.mass.gov/portal/site/massgovportal/menuitem.769ad13bebd831c14db4a11030468a0c/[Mesma linha. ]
?pageID=itdsubtopic&L=4&L0=Home&L1=Policies%2c+Standards+%26+Legal&L2=Enterprise[Mesma linha. ]
+Architecture&L3=Enterprise+Technical+Reference+Model+-+Version+3.5&sid=Aitd
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e que pode ser lido diretamente ou transferido para seu computador seja no formato PDF, seja no formato OpenDocument (ODF). Levando isso em consideração, adivinhe que formatos foram escolhidos para padronizar a documentação da comunidade de Massachussetts? Não é preciso muita perspicácia para acertar: PDF e ODF.
O que têm em comum esses dois formatos para serem os escolhidos? Simples: são “abertos”. Ou seja: não são “proprietários”, suas especificações estão publicamente disponíveis e podem ser consideradas padrão. Por essa razão a referência técnica emitida pela Comissão acima citada estabelece que a partir de janeiro de 2007 os órgãos governamentais do Estado de Massachussetts apenas trabalharão com esses dois formatos de documentos. Na verdade, a idéia é trabalhar apenas com o OpenDocument. O formato PDF (Portable Document Format) é mencionado na referência técnica apenas como “other acceptable format” (outro formato aceitável).
Mas o que é o ODF? Bem, ODF representa “OASIS Open Document Format for Office Applications” (formato aberto de documentos para aplicativos de escritório OASIS). E OASIS é a sigla da Organization for the Advancement of Structured Information Standards (organização para o progresso de padrões estruturados de informação), uma instituição da qual fazem parte a Sun, IBM, Adobe, Corel e, sobretudo, a turma do software livre. E se você sentiu falta de algum nome de peso nesta lista, certamente não foi por acaso...
Segundo a Wikipedia (< http://en.wikipedia.org/wiki/OpenDocument >), ODF é um “formato aberto de arquivos de documentos para gravar e intercambiar documentos de escritório editáveis tais como documentos de texto (incluindo memorandos, relatórios e livros), planilhas, gráficos e apresentações”. E, ainda segundo a mesma fonte, o padrão foi calcado no formato criado pela OpenOffice.Org com base na XML.
XML é o acrônimo de “eXtensible Markup Language”, ou linguagem de marcação extensível, uma linguagem de programação cuja característica básica é separar o conteúdo da formatação nos documentos por ela gerados. O que facilita extraordinariamente (mas não obriga) a criação de padrões abertos. E OpenOffice.Org é o nome do projeto destinado a desenvolver o pacote de aplicativos OpenOffice (cuja versão 2.0 foi recentemente liberada, inclusive em português do Brasil), um conjunto de aplicativos para escritório de código aberto e multiplataforma que pode transferido (“baixado”), usado e distribuído gratuitamente (veja detalhes e obtenha sua versão em < www.openoffice.org/ >; e se quiser conhecer um pouco da história do padrão OpenDocument, ler uma comparação técnica com outros formatos e conhecer alguns detalhes de sua estrutura, visite < http://opendocumentfellowship.org/Articles/HistoryOfOpenDocument >).
Será que você lembra de alguém que não ficou nem um pouquinho satisfeito com esse negócio todo? Se pensou em “Microsoft”, acertou. A empresa já vinha se opondo claramente à decisão da Comissão, como pode ser percebido no “Article on Proposal for Massachusetts to move to OpenDocument” de Brian Jones, um dos principais programadores do grupo de desenvolvimento do MS Office, postado em seu blog no final de Agosto, antes da decisão vir a público (leia em < http://blogs.msdn.com/brian_jones/archive/2005/08/31/458879.aspx >). Ele considera a proposta “míope” (“short sighted”) e desnecessariamente excludente, referindo-se não somente ao formato proprietário dos documentos do MS Office 2003 como também, e sobretudo, ao que ele chama de “formato aberto XML para o Office 12”.
Pois ocorre que a linguagem XML aponta indubitavelmente para o futuro. E não somente o formato atual usado pelos documentos do Office 2003 se apóia fortemente nela (embora ainda seja um formato essencialmente proprietário, cujas especificações não foram tornadas públicas), como também o que está sendo desenvolvido para a próxima versão do pacote, por enquanto conhecida como “MS Offfice 12”, será (segundo Jones) “completamente aberto” e também baseado na XML.
Evidentemente uma decisão como a do Governo de Massachussetts é um problema sério para a MS, que hoje domina o mercado de aplicativos para escritórios. E sabe que a tendência é que outros governos e instituições privadas adotem atitudes semelhantes. Tanto assim que acusou o golpe. E há duas semanas anunciou que submeteria à Ecma, uma associação européia dedicada à padronização nos campos da tecnologia de informação, telecomunicações e eletroeletrônica, seu futuro formato de arquivos, ao qual se referiu como formato “Microsoft Office Open XML”, para ser adotado como padrão aberto. E, uma vez conseguida a aprovação da Ecma, submeterá o formato à ISO (International Standards Organization), a respeitadíssima organização internacional de padrões.
Por enquanto, não sei no que isso vai dar. Mas se ambos os padrões (o que, essencialmente, é uma contradição em termos; se é padrão, só pode haver um) forem intercambiáveis, a tendência é que dentro de pouco tempo o dilema dos formatos desapareça. E todos os arquivos poderão ser editados por todos os programas.
Um negócio que trará vantagens para todo o mundo. Principalmente para nós, usuários.
É esperar para ver.

B. Piropo