Sítio do Piropo

B. Piropo

< Coluna em Fórum PCs >
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12/03/2007

< O cacto e a pélvis >


Meus dezessete leitores devem estar cogitando a razão de meu sumiço (ou não; vai ver não estão nem aí e eu é que sou mesmo presunçoso...) Afinal, interrompi uma longa série antes do que seria a última coluna para escrever um artigo sobre o mercado que a turma do Linux tomou como provocação (ou não; vai ver eles têm razão e eu é que sou impertinente, mesmo) e, ao fim e ao cabo, nem retomei a série nem respondi os comentários da coluna sobre o mercado. E abandonar uma série antes de terminá-la ou deixar comentários sem resposta são coisas que não se faz (ou não; vai ver eu tive bons motivos para isto).

Pois ocorre que tive mesmo e esta coluna tem apenas o objetivo de expô-los (o final da série e os comentários sobre a coluna anterior virão breve, como vocês perceberão caso se dêem ao trabalho de terminar de ler esta). Mas hoje, embora em uma coluna publicada no Fórum PCs, um sítio voltado por excelência para informática, vocês encontrarão pouco ou quase nada sobre o assunto. E o aviso vem logo no início para não decepcionar aqueles corações empedernidos que só pensam em bits e bytes e não ligam para as vicissitudes da vida de um pobre colunista. Portanto, se você é um deles, pare por aqui mesmo ou prossiga por sua conta e risco. De hardware não falaremos hoje.

Pois ocorre que logo após escrever a coluna anterior viajei para o Chile.

O Chile, como vocês bem sabem, é aquele país alto e magro logo atrás da Argentina, junto à Costa do Pacífico. Por razões de trabalho tenho andado por lá regularmente nos últimos vinte anos, o que me permitiu acompanhar a mais extraordinária evolução que jamais vi em uma nação. Sua economia, baseada antes quase exclusivamente na exportação de minérios (principalmente cobre), diversificou-se e hoje, além de produtos minerais, abrange frutas, madeira industrializada, peixes (o salmão que comemos por aqui costuma vir de lá), produtos alimentícios em geral e vinho (ah, o vinho chileno!). Produtos não minerais, que há três décadas mal chegavam aos 30% do conjunto de exportações, hoje superam os 60%. Com isto a economia chilena arejou-se e, com a ajuda da enorme valorização dos preços internacionais do cobre nos últimos anos, cresceu com taxas vertiginosas nos anos noventa do século passado e, embora tenha sofrido um pequeno declínio após 2001, já apresenta sinais de plena retomada.

Resultado (e parodiando Nosso Guia que recentemente declarou que certo país da África era “tão limpinho que nem parecia África”): o Chile nem parece fazer parte da América do Sul. Santiago, a capital, cresce literalmente a olhos vistos. Seu moderníssimo sistema metroviário, construído inteiramente nas últimas três décadas, já cobre praticamente toda a malha urbana de uma cidade que, com seus sete milhões de almas, abriga quase metade da população do país. Zonas decadentes são inteiramente reurbanizadas quase que da noite para o dia e nelas florescem magníficos exemplos de arquitetura contemporânea. O centro de Santiago foi inteiramente modernizado sem perder as características culturais regionais. Novas avenidas cortam velhos bairros e uma delas, a “Costanera”, tem um trecho, inaugurado recentemente, que se estende por alguns quilômetros por baixo do leito do Rio Mapoche, que corta o centro da cidade. E, convenhamos, construir uma das principais artérias de tráfego da capital por baixo do leito de um rio em uma zona sísmica, onde os tremores de terra são freqüentes, é prova não apenas de um formidável avanço da tecnologia da construção civil como também de coragem e de extraordinária fé em Deus e na resistência do concreto armado.

Mas desta vez não fiquei em Santiago. Razões de trabalho me levaram pela primeira vez ao Norte do Chile, mais precisamente à Quarta Região, situada a cerca de quatrocentos quilômetros da capital.

Até então do Chile eu conhecia apenas uma longa e bonita faixa do litoral, que se estende de Concón a Concepción (passando por Viña del Mar e Valparaiso), os magníficos Andes e suas estações de esqui (como Valle Nevado e Farellones) e parte do Sul, com sua exuberante vegetação. Além da deslumbrante região dos lagos andinos (com Villa Rica e Pucón), o umbral da Patagônia Chilena (sim, o Chile é um país belíssimo e sorte tenho eu de exercer uma profissão que me leva a conhecer lugares como este). Ao Norte nunca tinha ido. E o Norte do Chile é tão diferente do Sul quanto a Amazônia é diferente do Pampa gaúcho. Na verdade é ainda mais diferente.

Enquanto o Sul é frio, de vegetação pujante e pontilhado de lagos onde a água abunda, o Norte é seco e árido. No extremo Norte do Chile, a mil e setecentos quilômetros ao Norte de Santiago, situa-se o Deserto de Atacama, considerado o mais árido do planeta. A Quarta Região, onde estive, fica mil e trezentos quilômetros mais ao Sul de Atacama porém já apresenta o aspecto peculiar das regiões áridas: vegetação paupérrima, uma ou outra árvore mirrada, muita terra e cactos (ah, os cactos! Logo voltaremos a eles). Veja um panorama típico na Figura 1.

Figura 1: Panorama nas cercanias de Combarbalá, Chile.

Minha viagem de Santiago à Quarta Região foi por automóvel. A rede viária do Chile é impecável. Todo o país (pelo menos a boa parte que conheço) é cortado por estradas pavimentadas, bem conservadas, inclusive as regiões semi-desérticas onde há apenas pequenas cidades de cerca de dez mil habitantes, a maioria delas dedicadas à mineração ou ao cultivo de frutas (em áreas irrigadas em pleno deserto...) A Figura 1 mostra um aspecto das cercanias de uma destas cidades, Combarbalá.

Combarbalá tem pouco mais de quinze mil almas. Situa-se a cerca de mil metros de altitude, nas faldas da Cordilheira dos Andes. Vive da mineração, artesanato e criação de gado caprino. O artesanato se baseia principalmente em artefatos esculpidos em pedra, mais especificamente em combarbalita, um tipo de rocha parecido com a pedra sabão que aflora exclusivamente naquela região. Ela é a única coisa que torna Combarbalá diferente das dezenas de pequenas comunidades vizinhas.

Combarbalá fica em uma zona desértica, portanto suas montanhas têm cactos.

No Brasil não temos cactos. Pelo menos não os do tipo “candelabro”, altaneiros, que na região são conhecidos por “quiscos”. O que me levou a tirar uma foto para mostrar aos amigos.

Não fora eu assomado na ocasião por um súbito, incontido e incontrolável acesso de estupidez aguda, teria me contentado em eu mesmo tirar a foto de um cacto, trazê-la para casa e exibi-la a quem interessar pudesse. Mas não: algo me levou a crer que isto seria pouco. O que eu precisava mesmo era de uma foto minha junto a um cacto.

A foto, tirada por um amigo e companheiro de trabalho e exibida na Figura 2, será devidamente impressa, emoldurada e ocupará lugar de destaque em minha mesa de trabalho (se fosse menos contrastada eu a usaria como fundo da Área de Trabalho em meus computadores). Doravante, toda a vez que eu me sentir impelido a cometer uma insensatez, burrice, ato insano, temeridade ou qualquer coisa que se assemelhe a simples e mera estupidez, pretendo olhar para ela com o objetivo de, quem sabe, me conter.

Figura 2: Eu e os cactos.

Conforme vocês podem reparar na foto, tanto os cactos quanto eu estamos eretos, em pé, altivos.

Os cactos continuam assim.

Quanto a mim, o momento capturado na foto, tirada há um par de semanas em Combarbalá, ilustra a última vez que fui visto na vertical desde então.

De lá para cá, só deitado...

Isto porque ao descer do barranco de onde a foto foi tirada, estabaquei-me no chão e rolei uns tantos metros sobre os pequenos cactos (e seus espinhos) que não aparecem na foto mas que pontilham o terreno do deserto. Uma queda um tanto espetaculosa durante a qual percebi que algo em mim havia se quebrado além do amor próprio.

Após uma viagem de carro de três horas e meia até La Serena, situada a 460 km de Santiago, a cidade de porte médio mais próxima com um hospital suficientemente equipado para um diagnóstico decente, cheguei à Clínica Elqui, onde a análise de uma bateria de radiografias e uma tomografia computadorizada (pra não dizer que não falei de computadores...) confirmou a suspeita: constatou a ocorrência de quatro fraturas na bacia, uma contusão séria (e dolorosa) no ombro esquerdo, escoriações generalizadas, algumas dezenas de espinhas de cactos encravadas no corpo, profundos ferimentos em uma região da alma onde se armazena um sentimento denominado “orgulho” e uma imensa sensação de vergonha pela basbaquice cometida (os dois últimos itens não apareceram na tomografia mas, literalmente, estavam na cara).

O hospital era, felizmente, muito bem dotado de recursos. O médico que me atendeu, Dr. Ricardo Lopez, foi extraordinariamente competente tanto na sua especialidade quanto no trato com o paciente (ou seja: capaz de consertar tanto ossos quanto orgulho fraturados). Seus diagnósticos e suas previsões de tratamento foram integralmente confirmados na clínica especializada em traumatologia onde fui reexaminado ao chegar, finalmente, de volta ao Rio de Janeiro alguns dias depois do acidente: afortunadamente as fraturas são do tipo que não exigem cirurgia e para consolidá-las, “basta” permanecer deitado, tão imóvel quanto possível, por um período de algumas semanas (ainda não sei exatamente quantas), atividade a que tenho me dedicado desde então com denodo e empenho, embora com entusiasmo compreensivelmente reduzido.

Dizem que La Serena é uma cidade muito bonita, situada à beira mar, banhada pelo Oceano Pacífico (sim, o acidente foi nos Andes, mas para chegar a La Serena foram quase quatro horas de uma viagem que a dor tornou inesquecível). É a capital da Quarta Região, conhecida mundialmente por seu céu puro, isento de poluição e interferências, o que fez com que abrigasse alguns dos observatórios astronômicos mais importantes do Hemisfério Sul. Fundada no século XVI e com mais de cem mil habitantes, dispõe de uma universidade e é uma das cidades mais importantes do Norte do Chile.

Tudo isso, naturalmente, eu sei de ouvir dizer. Porque em lá chegando, por razões compreensíveis, eu não estava em condições de apreciar a paisagem. E, dada a forma como fui de lá removido, também não deu para observar o panorama ao sair. Assim, de La Serena, me contentei em conhecer com um nível de detalhes razoável os tetos dos corredores da Clínica Elqui observados enquanto era transportado de maca de um lado para outro, os das salas de exame e, com grande riqueza de detalhes, o do quarto onde permaneci deitado por mais de cinco dias e desenvolvi grande popularidade entre as enfermeiras – todas extremamente competentes e atenciosas.

Um comentário importante: durante toda esta provação, enquanto estive no Chile, recebi tanto das equipes médicas e de enfermagem da clínica quanto de meus companheiros de trabalho e amigos chilenos uma atenção, carinho e cuidados que chegaram a ser comoventes. Não há como agradecer a todos exceto retribuindo com minha gratidão e amizade eternas. A todos eles, obrigado.

Figura 3: Viagem La Serena / Santiago.

No terceiro dia as coisas começaram a melhorar com a chegada de meu filho, Luís Cláudio, um exemplar revisto e bastante melhorado do pai. Que, hablando un español perfecto, em dois dias, após um trabalho insano e com imensas competência, dedicação e empenho, recorrendo à sua experiência do trato com estrangeiros adquirida em sua profissão (trabalha com turismo), conseguiu desatar todos os nós burocráticos e operacionais, quebrar galhos, cultivar amizades e influenciar pessoas, tudo isto para fazer os arranjos necessários para que o velho pai doente fosse transportado de ambulância desde o hospital em La Serena até a porta do avião no pátio do aeroporto de Santiago (mais de seis horas de viagem, veja Figuras 3 e 4), lá acomodado em uma cadeira de classe executiva (pão duro é o cacete: o vôo não dispunha de primeira classe) cuja inclinação do encosto e apoio para os pés o mantiveram relativamente confortável durante o vôo Santiago / Rio (outras seis horas) e chegasse ao Rio de Janeiro em segurança e relativo conforto.

Figura 4: Translado para o avião em Santiago.

No Rio as coisas começaram a ficar mais claras. Fui recebido por uma ambulância no pátio do Tom Jobim e de lá levado diretamente a uma clínica especializada em traumatologia (translado mostrado na Figura 5 onde, no celular, tento explicar aos amigos o inexplicável). Nela, novas radiografias foram feitas, novos exames efetuados, resultados comparados com os obtidos em La Serena e, por fim, e com a graça do bom Deus, foi exarado o veredicto: eu poderia permanecer em casa durante o período de consolidação da fratura desde que me sujeitasse à principal limitação, permanecer deitado sem sequer pensar em sentar e muito menos pôr-me de pé.

Deitado estou. E assim permanecerei durante pelo menos quatro semanas após as quais poderei desfrutar da magnífica mobilidade e sensação de liberdade que uma cadeira de rodas (já alugada) me proporcionará por mais algum tempo. Depois disso, reaprender a andar, primeiro apoiado em um andador, depois em um par de mulatas, digo, muletas, e finalmente bengalas. Dentro de alguns meses poderei voltar a dirigir e caminhar quase ereto, como vinha fazendo nos últimos anos.

Figura 5: Retorno ao Rio.

Ao fim e ao cabo, devo levar em conta que as conseqüências da queda poderiam ter sido infinitamente mais graves (durante algumas horas, desde o acidente até a confirmação por radiografia e tomografia que as fraturas estavam limitadas ao pélvis, passei maus momentos imaginando em que estado estariam minhas vértebras lombares; uma fratura ali, perfeitamente possível considerando o tipo de acidente, me deixaria hemiplégico pelo resto da vida). Portanto a coisa não é tão má quanto parece.

Posso trabalhar, desde que o faça na condição de mais um representante das profissões que o fazem na cama. Como é da cama que estou editando esta coluna, praticamente todas as minhas atividades profissionais poderão prosseguir graças à tecnologia, rede doméstica WiFi, Internet Banda Larga e, se não do ponto de vista tecnológico certamente no que toca ao conforto, ao dispositivo mais formidável de todos: uma mesinha destas de tomar café na cama que facilita as coisas pracacete, onde repousa este notebook que vos fala (como vocês podem verificar na Figura 6).

Figura 6: De volta à casa.

Aulas, infelizmente, terei que interromper neste semestre. O que é uma lástima, já que de todas as minhas atividades profissionais, lecionar é a que mais me recompensa (não me refiro aos aspectos financeiros, ça va sans dire). Vão aqui então minhas desculpas aos meus alunos da PUC, Infnet e UniverCidade que fui obrigado a abandonar neste semestre. Mas espero retornar no próximo.

Já a maioria das demais atividades pode prosseguir, se bem que no princípio com um ritmo mais lento e desde que realizadas da cama.

Pois é isto. Na cama estou e na cama permanecerei ainda por um bom tempo. Mas nada me impede de nela receber meus amigos e amigas (quanto a estas devo advertir que, pelo menos por enquanto, apenas para atividades que não exijam movimentação da pélvis, fraturada em quatro pontos). E, evidentemente, receber e (na medida do possível) responder mensagens de correio eletrônico.

E, como sempre se deve tirar algum proveito mesmo das situações menos favoráveis, é bom saber que com a imperiosa suspensão das aulas e de todas as atividades externas, talvez consiga tempo para pôr em dia minhas colunas no FórumPCs.

Me aguardem...

 

B. Piropo