Sítio do Piropo

B. Piropo

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05/11/2007

< Um novo tipo de memórias I: >
<
tecnologia nanoiônica >


Dia desses um aluno me mandou o URL de um sítio da Internet com uma notícia sobre o desenvolvimento de um novo tipo de memória. Evento duplamente auspicioso já que não apenas me trazia uma informação que eu desconhecia como também demonstrava o interesse de meus alunos (pelo menos deste...) pelo tema das aulas e seu hábito de fazer pesquisas via Internet. Respondi que assim que arrumasse algum tempo livre faria uma visita ao sítio para me informar sobre o assunto.

Acabo de fazê-la. O sítio é o Inovação Tecnológica, a notícia era sobre < http://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=010110071026 > memórias nanoiônicas e a visita bem que valeu a pena. Resolvi então fuçar um pouco mais sobre o assunto para me informar melhor sobre suas bases técnicas e dividir com vocês na novidades que encontrei.

As memórias de semicondutores atualmente empregadas em nossos computadores e nessa parafernália de dispositivos digitais que invadiu a vida moderna, que vão desde micros de mão e câmaras fotográficas digitais até reprodutores de música no formato MP3 e telefones celulares, são memórias “de carga elétrica”, ou seja, armazenam informações considerando a presença ou ausência de cargas elétricas em pequenos dispositivos denominados “células de memória”. O acúmulo de carga elétrica em uma célula de memória representa o dígito binário (“binary digit” ou “bit”) “um”, enquanto a ausência de carga nesta mesma célula representa o bit “zero”.

Mas esta não é a única forma de armazenar informações. Qualquer dispositivo que possa assumir dois estados estáveis mutuamente exclusivos, permita que seu estado seja alterado (pelo menos uma vez) e que seja “lido”, pode armazenar um bit de informação e, portanto, pode servir como célula de memória. Até mesmo um conjunto de lâmpadas que, dependendo das que estão apagadas ou acesas, pode armazenar um número expresso em binário (complicou? que nada... dê uma olhada na coluna “Computadores XXXII: Células de memória” e veja como a coisa é simples).

E é muito bom que seja assim, porque a tecnologia de fabricação das memórias “de carga elétrica”, que vem evoluindo rápida e incessantemente nos últimos vinte anos, começou a esbarrar em obstáculos difíceis de serem transpostos. E a razão disto é a brutal miniaturização exigida pela eletrônica moderna, que trabalha com dispositivos cada vez menores. Pois ocorre que quanto menores são as células de memória de carga elétrica, menores são as cargas que podem armazenar. E atualmente o valor desta carga já se aproxima do limite de detecção. Ora, como uma das condições para que um dispositivo possa ser usado como célula de memória é a possibilidade da “leitura” de seu estado, se a carga chegar a um valor tão pequeno que não possa ser detectada com confiabilidade o dispositivo perde sua utilidade como célula de memória.

Não obstante tudo isso, há alguns dias < http://www.eas.asu.edu/~mkozicki/ > Michael Kozicky, diretor do CANi (< http://www.asu.edu/aine/cani/cani_struct.html > Center for Applied Nanoionics) da Universidade Estadual do Arizona - ASU anunciou à imprensa internacional que sua equipe desenvolveu um tipo de memória incrivelmente compacta (o anúncio à comunidade científica foi feito através do artigo “Bipolar and Unipolar Resistive Switching in Cu-doped SiO2.” publicado no número de outubro de 2007 da revista técnica “Journal IEEE Transactions on Electron Devices).

Declarou Kozicky: “Em um ‘thumb drive’ com este tipo de memória se poderia armazenar um TeraByte de informação. Você poderia gravar em vídeo todos os eventos de sua vida e armazenar nele”.

Ora, considerando o que dissemos acima sobre as memórias de carga elétrica, evidentemente a façanha anunciada por Kozicky somente seria viável utilizando um tipo de memória diferente. E na verdade é assim: as novas memórias são de resistência (e não de carga) elétrica. Uma mudança que traz notáveis vantagens tanto do ponto de vista de uso quanto de fabricação, como logo veremos.

Uma memória de resistência elétrica baseia-se na resistência oferecida à passagem de corrente elétrica entre dois pontos de um circuito elétrico. Estes pontos e mais a estrutura que os interliga constituem a célula de memória. Quando a resistência à passagem da corrente é relativamente baixa (ou seja, quando um condutor elétrico une os dois pontos), considera-se que a célula armazena o bit “um”. Quando a resistência é alta ou infinita (ou seja, quando não existe um condutor elétrico entre os dois pontos), considera-se que a célula armazena o bit “zero”.

Este tipo de memória não é novo. Na verdade, nos primórdios da era dos computadores pessoais, alguns circuitos de memória tipo ROM ou PROM utilizados para armazenar as rotinas do BIOS se baseavam no mesmo princípio. A diferença entre eles e as novas memórias recém anunciadas é de escala. E grande: uma diferença da ordem de dezenas de milhares de vezes. Porque as memórias anunciadas pelo Dr. Kozicky são um produto do novo ramo da ciência denominado < http://www.asu.edu/aine/app_nanoionics.htm > “nanoiônica” que, por sua vez, é um ramo da nanotecnologia, o campo das ciências aplicadas que se dedica ao controle e manipulação da matéria no nível de átomos e moléculas. Na prática isto significa trabalhar com partículas de matéria prima cujo tamanho varia entre um e cem nanômetros (um nanômetro é a bilionésima parte do metro).

Curiosamente, a nanoiônica desenvolveu-se a partir da eletroquímica. E eletroquímica é uma coisa corriqueira: as pilhas e baterias elétricas são dispositivos eletroquímicos, ou seja, que se baseiam na relação entre a eletricidade e alterações no estado químico de certas substâncias. No caso das baterias, a movimentação de íons (partículas químicas eletricamente carregadas) devido à mudança de seu nível de oxidação provoca uma corrente elétrica entre seus dois terminais, ou eletrodos.

Ora, mas para transformar um átomo (menor partícula que pode caracterizar um elemento químico), partícula eletricamente estável, em um íon, partícula química carregada de eletricidade, basta remover um ou mais elétrons.

Sendo uma partícula dotada de carga elétrica o íon está sujeito a um “campo elétrico”, ou seja, pode se mover de um ponto a outro devido às ações de atração e repulsão deste campo. E, na nova posição, pode ser novamente transformado em um átomo recebendo de volta os elétrons previamente subtraídos. Isto, em última análise, permite que se “destrua” uma substância formada por átomos de um mesmo elemento transformando-os em íons (removendo elétrons) e se “recrie” a substância em outro ponto (devolvendo-lhe os elétrons e revertendo o estado de íon para o de átomo).

Esse negócio de transportar matéria destruindo-a em um ponto e recriando-a em outro parece coisa de ficção científica dos tempos do Capitão Kirk (quem desconhece o personagem pode consultar seu sítio na Internet, < http://www.thecaptainkirkpage.com/ > “The Captain Kirk Page”) mas na verdade é exatamente o que faz o velho processo usado há décadas pela indústria metal-mecânica denominado “deposição eletroquímica” ou “galvanoplastia”, onde uma fina camada metálica é depositada sobre uma superfície para revesti-la (não conhece? mas claro que sim: chama-se “niquelagem” ou “cromagem” quando o metal é níquel ou cromo e “banho de ouro” ou “banho de prata” quando é ouro ou prata).

Nele, mergulha-se em uma solução de produtos químicos denominada “eletrólito” dois eletrodos metálicos (o primeiro é uma peça do metal em alto estado de pureza, seja cromo, níquel, ouro, prata ou qualquer outro metal e o segundo é a peça a ser galvanizada) e uma diferença de potencial elétrico é aplicada entre eles. Alguns átomos do metal do primeiro eletrodo se ionizam (perdem elétrons), ganhando uma carga elétrica positiva que faz com que sejam transportados através da solução atraídos pela carga negativa do segundo eletrodo, a peça a ser galvanizada. Ao entrar em contato com ela, recuperam seus elétrons e se depositam sobre sua superfície, já sob a forma de átomos (aposto que você nunca havia pensado na cromagem como um sistema de transporte de matéria...)

Figura 1: Prata depositada em
eletrólito sólido.

Pois bem: o termo “nanoiônica” se aplica quando os fenômenos eletroquímicos ocorrem na escala nano, ou seja, entre eletrodos cuja distância é da ordem de até algumas dezenas de nanômetros. Uma situação em que os resultados são bastante diferentes da versão em escala macro. Pois como a mobilidade dos íons é relativamente alta e nesta escala as distâncias são extremamente pequenas, os fenômenos se manifestam com uma rapidez extraordinária. Além disto, enquanto na macro-escala o eletrólito (o meio no qual são mergulhados os eletrodos e através do qual se movimentam os íons) é sempre um meio líquido ou um gel, na escala nano uma grande variedade de materiais sólidos têm se revelado excelentes eletrólitos (veja, na Figura 1, obtida no sítio da Universidade do Estado do Arizona – ASU, uma microfotografia de uma camada de prata eletricamente depositada em um eletrólito sólido). Inclusive alguns compostos de silício, principal matéria prima para fabricação dos circuitos integrados.

O que leva a um interessantíssimo desdobramento: a possibilidade de utilizar nos novos circuitos os mesmos processos produtivos usados na fabricação das atuais. Fato de extraordinária importância que voltaremos a abordar mais tarde.

As pesquisas do CANi indicam que a nanoiônica abre horizontes inteiramente novos para diversos ramos da tecnologia. Com ela pode-se alterar a capacidade de aderência de líquidos às superfícies formadas por eletrodeposição, tornando-as “hidrofóbicas” (que repelem água em vez de serem molhadas por ela) e permitindo desenvolvimento de dispositivos de controle de fluxo em tubulações na escala nanométrica. Também as propriedades óticas (transmissão e reflexão de luz) destas superfícies sofrem grandes alterações, o que permite a utilização da técnica na optoeletrônica. Além da alteração da freqüência de ressonância de um elemento vibratório, o que permite a aplicação em dispositivos ressonantes em rádio-freqüências.

Mas o efeito que realmente nos interessa é a mudança radical da resistência elétrica de materiais depositados em um eletrólito sólido. Porque é deste efeito que derivam uma multidão de aplicações na área de eletrônica do estado sólido (ou seja, baseada em transistores e outros dispositivos semicondutores). Que inclui a fabricação de memórias.

Como funcionarão estas memórias? Como fabricá-las?

Bem, este é justamente o assunto da próxima coluna...

 

B. Piropo