Escritos
B. Piropo
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01/08/1994

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O manual de meu telefone tem vinte e duas páginas. O da secretária eletrônica vinte e quatro e o do vídeo cassete quarenta e quatro. O telefone recebe duas linhas e tem doze memórias. A secretária pode ser operada remotamente de outro telefone e o vídeo cassete tem todas aquelas diabólicas funções de programação.

Antigamente um telefone era um telefone, e temos conversado: tirava-se do gancho, rodava-se a manivela, dizia-se para a telefonista com quem se queria falar, ela fazia a ligação e falava-se (eu não disse que sou antigo? É verdade que tinha que subir num banquinho para alçar a boca a menos de meio metro do fone e ainda assim esticar o braço para alcançar a manivela, mas já usei um negócio desses). Depois, a tecnologia trouxe os telefones de disco. Mais complicados, é fato. Mas eu não me lembro de jamais ter visto um daqueles telefones pretos antigões com manual.

Minha primeira secretária eletrônica era um monstrengo de uma só fita na qual gravava-se uma mensagem para cada recado. Um trambolho, mas era operada só com dois botões: um para ouvir os recados, outro para retroceder a fita. Honestamente, não me lembro se tinha manual. Devia ter, mas tudo era tão simples que na verdade nem era necessário. O vídeo cassete, esse nasceu complicado. O meu é dos antigos, razoavelmente demodé, mas já ostenta seu opulento manual. Parece que o mundo está se complicando. E olhe que nem me dei ao trabalho de mencionar o forno de micro-ondas.

Telefone, secretária eletrônica, vídeo cassete e forno de microondas são algumas das ferramentas necessárias para sobreviver com conforto na selva urbana. Assim como o computador. Mas esse é um pouquinho mais complicado, já que é uma ferramenta por si só inútil. Para fazer algo que preste precisa de outras ferramentas, os programas. Que, por sua vez, também têm seus manuais.

O Fácil 7.0 para DOS, um editor de textos dos mais simples, vem com um manual de mais de duzentas páginas. Microsoft Word 6.0: dois manuais totalizando pouco mais de mil páginas. PC Tools 7.1: seis manuais, mil e duzentas páginas. Lotus 123 2.0 para OS/2: cinco manuais, mais de mil e seiscentas páginas. Exceto programas para computador, vocês conhecem alguma outra ferramenta que traga um manual de mais de mil páginas? Por favor, não me venham com a conversa que o Word é muito mais que um editor de textos, mas um programa de editoração eletrônica. Ou que o Lotus, com o solver e o analisador de cenários, é muito mais que uma planilha. De fato assim é. Mas ambos, essencialmente, continuam sendo ferramentas: o Word, uma ferramenta para escrever, o Lotus 123 para fazer cálculos. E o PC Tools se não fosse ferramenta teria outro nome.

Vejam lá, não me entendam mal: não estou criticando as softhouses por escreverem manuais grandes demais. Pelo contrário: esses programas, com todos os seus recursos, precisam de fato de encorpadíssimos manuais. Na verdade, precisam de muito mais que isso. Basta ver a enorme quantidade de livros e cursos ensinando a usá-los. E também não me venham com o argumento que esses livros e cursos servem apenas para os piratas, que têm o programa mas não os manuais. Esse argumento é de quem nunca precisou se safar de um aperto consultando um manual. Qualquer usuário honesto que comprou um desses programas e tentou aprender a usá-lo recorrendo apenas aos manuais sabe perfeitamente a utilidade de um curso ou um livro que explique a coisa didaticamente.

Mas se os mastodônticos manuais são necessários, então onde está o problema? Vejamos: eu me considero um heavy user - baseado meramente no tempo que passo em frente a esse monitor. E os programas que mais uso são editores de texto. Eu sei que isso é uma espécie de religião e vai ter gente achando que escolhi errado, mas arrisco-me a citar os dois que uso: Word for Windows e Fácil para DOS (um dia ainda explico porque dois). Logo, sendo um heavy user e usando principalmente editores de textos, devo ser um expert naqueles dois e conhecê-los de cabo a rabo. Pois confesso, humildemente, que jamais usei mais de vinte porcento dos recursos de qualquer um deles. Mesmo do Fácil, que é dos mais simples. E olhem que meus livros saem daqui diretamente para a gráfica, inteiramente "editorados" no Word, incluindo sumário e ilustrações.

Será que estou sub-utilizando minhas ferramentas? Não creio. Na verdade, como não sofro de tecnofobia, sempre que preciso de um recurso acabo por descobrir como usá-lo. Por inacreditável que possa parecer, chego mesmo às raias do absurdo de, eventualmente, consultar os manuais. Portanto, se somente usei vinte porcento dos recursos de meus programas é porque não precisei de usar mais. Da mesma forma que nunca operei minha secretária eletrônica remotamente, jamais programei meu vídeo cassete, só uso o micro ondas para descongelar comida e ferver água para o chá e a maior parte das memórias de meu telefone estão vagas. Perceberam onde está o problema? Isso mesmo: recursos demais.

De novo, não me entendam mal: também não reclamo das softhouses por incluírem recursos demais em seus programas. Elas têm que fazer isso, senão não vendem. Precisam de atualizar as versões, e cada atualização tem que trazer um mundo de recursos novos. E fazem isto porque os concorrentes estão sempre enfiando mais recursos em seus programas. Você sabia que o Word for Windows é capaz de inserir referências cruzadas em um documento subdividido em seções e atualizá-las automaticamente quando se alteram as posições relativas? Ou que o Fácil para DOS, um editor dos mais simples, é capaz de gerar o valor por extenso de qualquer número? Pois são. Algum de vocês, algum dia, já precisou destes recursos?

Bem, mas se não estou reclamando das softhouses por fazerem manuais grandes demais, botarem recursos demais nos programas e fazerem deles ferramentas complicadas demais, reclamo de quem?

Bem, em última análise reclamo mesmo é de mim. Ou melhor: de nós. Porque somos nós, os usuários, que forçamos as softhouses a enfiar tantos e tão desnecessários recursos nos programas. Somos nós que vivemos de olho no programa do vizinho e morremos de inveja quando descobrimos que seu editor é capaz de gerar um índice remissivo e o nosso não. Mesmo sem ter a menor idéia do que venha a ser esse negócio, se o nosso não fizer, não presta. E não porque algum dia iremos precisar, mas somente porque o nosso editor não está na vanguarda tecnológica dos editores de texto.

E como sei que não vamos mudar, o negócio é se preparar para ler os malditos manuais. O do Lotus, por exemplo, na base de cinqüenta páginas por dia, vai me consumir mais de um mês...

B. Piropo