Escritos
B. Piropo
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17/10/1994

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Engenheiro recém formado, coube-me ser o elemento de ligação entre uma equipe do Laboratório Nacional de Engenharia Civil de Lisboa e a antiga SURSAN. O LNEC é um centro de excelência em engenharia hidráulica. A equipe, composta por dois engenheiros, Bivar e Bagorra, e dois topógrafos, Branco e Ruivo, era da melhor qualidade. Poucas vezes tive a oportunidade de conhecer profissionais de tão alto gabarito, tamanha competência e dedicação. Foi uma extraordinária experiência e, graças sobretudo à fina educação e ao profissionalismo dos portugueses, tudo correu na mais perfeita ordem. Houve somente uma fonte de desentendimentos: o idioma.

Lembro-me do dia em que, para montar um aparelho trazido de Portugal, era preciso encher uma cavidade com massa consistente. Eles não a haviam trazido, e cabia a mim, como elemento de ligação, providenciar o material. Depois de muito indagar, sem nenhum resultado prático, estava eu a ponto de importar da Europa uma lata do produto quando um auxiliar, que trabalhara antes com outra equipe lusitana, esclareceu a questão: tratava-se de graxa. Essa mesma graxa que se encontra em qualquer oficina. Era isso mesmo, perguntei a um dos colegas lusos? E ele, categórico, negou. Graxa, afirmou, era outra coisa: usava-se para lustrar sapatos. O que precisavam era de massa consistente. Comprei uma lata de graxa e o problema resolveu-se.

Desencontros desses houve muitos. Um dia pedi-lhes para aguardar um momento enquanto ia ao banheiro. "-Vais tomar banho agora?" - perguntou-me um deles. Claro que não. Expliquei o que iria fazer. "-Então não vais ao banheiro: vais à retrete", esclareceu. Custou-me muito descobrir que "lancil" era "meio-fio". E que "desperdício" era "estopa". Constatar que "fato" era "terno" não foi tão surpreendente quanto descobrir que "fato-macaco" era "macacão". Um dia, Bagorra, o mais bem humorado da turma, pediu-me para passar-lhe um frasco de tinta. Brincando, disse-lhe que frasco não havia. Havia um vidro de tinta. Retrucou que aqui fazíamos uma confusão dos diabos com uma coisa simples: por que a diferença entre frasco, vidro, garrafa e litro? Expliquei que "frasco" aqui usava-se, por exemplo, para perfumes. Para tinta usava-se "vidro". Já litro e garrafa eram medidas de volume: um litro continha mil mililitros e uma garrafa apenas setecentos. E neste ponto interveio o Branco, um topógrafo muito tímido que raramente se manifestava: "-Isso quando estão cheios. Se estão vazios, são cascos. Ainda ontem, fui comprar cerveja e o patrício do botequim perguntou-me se eu havia levado os cascos. E eu não sabia se me ofendia ou o que...". E passamos todos a nos divertir muito com a diferença dos idiomas falados cá e lá. Sempre que surgia um desencontro, eu dizia que eles não sabiam falar o português. E eles retrucavam que não poderiam deixar de sabê-lo, posto que foram eles que o inventaram. Quem não sabia éramos nós, que não havíamos aprendido.

Na verdade, sabemos nós e sabem eles. Mas cada um sabe o seu. Porque um idioma é uma coisa viva, que evolui. E as diferenças culturais empurraram o português de lá e de cá em direções paralelas, mas não coincidentes. Ainda dá para nos entendermos, mas de vez em quando surgem situações que vão do embaraçoso ao caótico. Caso se sinta mal em Portugal, jamais solicite um pronto-socorro: se a doença for grave, você corre o risco de morrer a bordo de um reboque para automóveis. E não se apavore com a maneira do médico dizer que vai lhe aplicar uma injeção nas nádegas.

Mas se as diferenças na linguagem coloquial d'aquém e d'além mar já dão margem a tantos desencontros, o que se pode esperar dos jargões? Particularmente do jargão da informática, um ramo do conhecimento tão recente, que nasceu depois das diferenças dos idiomas português e brasileiro já se terem solidificado?

A questão ocorreu-me ao ler o manual do OrganiZATOR, ou " ZATOR", para os íntimos. É um programa ibérico: o manual, em português, foi impresso na Espanha, mas não consegui descobrir se o programa também foi lá desenvolvido e vertido para o português ou se é um programa luso e só a impressão foi feita na Espanha. O ZATOR em si mesmo não vale muito comentário: é um PIM (Personal Information Manager) em tela texto. Tem todo o jeitão de um desses programas compilados em Clipper, com agenda de endereços ("direcções"), telefones, compromissos ("encontros"), datas importantes ("efemérides") e um banco de dados ("base de dados") configurável. Nos tempos dos PIM para Windows, o ZATOR é um anacronismo. O brasileiro "Companheiro de Escritório", do qual falaremos breve, dá de dez.

Mas a leitura do manual do ZATOR é instrutiva e mostra que os jargões da informática cá e lá são diferentes, como era de esperar, mas não tanto quanto se poderia supor.

Em Portugal você não seria um usuário, mas sim um utilizador do programa. E não veria suas telas, mas seus écrans. Disquete, em Portugal, é feminino: o programa vem em apenas uma disquete de 3,5". O DOS é um sistema operativo, não um sistema operacional. E lá não há arquivos, como você provavelmente já sabe: há ficheiros.

Um diretório continua sendo um diretório, mas se escreve directório. Parâmetros ou "switches" da linha de comando são modificadores adicionais, o que, convenhamos, é muito mais sensato e apropriado. Como também é mais apropriado usar indicador ao invés de prompt. Já chamar portas seriais de portas de série pode ser mais correto desde o ponto de vista do vernáculo (a palavra "serial" não existe no português nem de cá nem de lá), mas é um bocado estranho. A leitura do manual fica um tanto esquisita não tanto pelas diferenças do jargão, mas principalmente pelas do estilo. Vejam lá: "Através de uma sessão completa de ZATOR poder-se-á enviar o controlo da aplicação ao écran imediatamente anterior, do qual se provinha, premindo simplesmente ESCAPE". Ou: "ZATOR permite criar ou importar bases de dados ou ficheiros de direcções..." Traduzindo: "ZATOR permite criar ou importar bancos de dados ou arquivos de endereços..."

Mas um ponto do manual me deixou particularmente alvoroçado por achar que havia resolvido um problema que me incomoda há tempos. Seguinte: não existe em português o verbo "acessar", tão usado em informática (se duvida, vá ao dicionário). Eu mesmo, na falta de outro, o uso com freqüência. Mas sempre contrafeito. E lá, no manual do ZATOR, não se acessam arquivos: se acedem ficheiros. Aceder! Seria esse o verbo que me faltava? Eu o conhecia, é claro, mas nos sentidos de "juntar, aquiescer, adicionar, anuir". Mas será que "aceder" também significa "ter acesso"?

Disparei para meu Aurélio, o de capa dura e sem proteção contra cópia, e fui sofregamente até o verbete aceder. Lá estava ele. Com cinco acepções diferentes.

Nenhuma delas com o sentido de "ter acesso".

Parece que vou ter que continuar acessando arquivos. E tendo acessos de raiva...

B. Piropo