Escritos
B. Piropo
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Volte de onde veio
21/06/1999

< A Culpa é da Internet >


No alvorecer dos tempos nosso ancestral se encolhia no fundo da caverna durante as tempestades aterrorizado pelos raios. Que luz intensa era aquela, seguida de um ribombar tão inquietador? Certamente era algo poderoso. O problema é que ele não sabia explicar nem lidar com aquilo. Se pudesse, ver-se-ia livre daquela coisa perturbadora. Como não podia, dedicava-lhe veneração e medo. Em milênios a atitude do homem diante do que não entende mudou pouco. A ignorância continua inspirando medo. Aliado a uma vaga sensação de que deve-se esconjurar o objeto deste medo atribuindo-lhe a culpa dos males que nos afligem.

Por alguma razão essas idéias me ocorreram quando, há duas semanas, eu acompanhava o noticiário sobre a aventura de um casal de adolescentes. Não os conheço nem a suas famílias e não sei exatamente o que ocorreu, portanto talvez eu cometa alguma imprecisão ao relatar suas estrepolias. Mas isso não importa, já que o que me disponho a comentar não é o fato em si mas a forma como foi noticiado pela imprensa não especializada. Que, basicamente, foi a seguinte: depois de um contato em uma sala de "chat" e longas conversas por telefone, os dois jovens se conheceram pessoalmente. Se bem entendi, a família da menina chegou a receber o rapaz. Começaram o namoro e um belo dia combinaram a fuga. Saíram com pouco mais que a roupa do corpo e algum dinheiro. Passaram dois ou três dias fora de casa. Tomaram um ônibus interestadual para uma cidade do interior de Minas, dormiram em uma hospedaria, desentenderam-se, voltaram para o Rio de carona e nunca mais querem se ver. Do ponto de vista das relações entre casais, nada de extraordinário: é basicamente uma versão condensada do que ocorre com a maioria deles mais dia, menos dia. No final, entre mortos e feridos, salvaram-se todos e os meninos estão de volta às suas casas.

Antes que comece a chover cartas prenhes de indignação, deixo claro que não desdenho da ocorrência. Até localizarem seus filhos, as famílias dos dois jovens devem ter vivido momentos atrozes que eu, como pai, entendo e deploro. O episódio foi extremamente desafortunado. Mas, repito, não é ao fato que me reporto, mas à versão.

A imprensa deu intensa cobertura ao episódio. Ocorre que os dois jovens não se conheceram em uma festinha, em um show de pagode, na praia ou na casa de amigos: conheceram-se pela Internet. Pois bem: não houve uma única notícia, nem uma só, que não destacasse este fato como se ele fosse o detalhe mais escabroso da história. Em quase todas havia uma censura velada, atribuindo implicitamente à Internet a responsabilidade pela fuga. Tanto assim que muitas das notícias, tanto na mídia escrita como na eletrônica, vinham acompanhadas de recomendações e conselhos dados por "especialistas" sobre como proteger os jovens indefesos dos perigos da Internet. O que me fez perguntar cá ao meu fecho ecler (já não se usam botões como antigamente): tivessem os adolescentes se conhecido no colégio, ver-se-iam os mesmos bestalhões advertindo com ar solene sobre os perigos da escola?

Na Internet houve apenas o primeiro contato – que poderia ter se verificado em qualquer outro lugar. Depois, eles passaram horas ao telefone e ninguém se lembrou de responsabilizar Graham Bell pela fuga. Embarcaram em um ônibus interestadual e não se cogitou de verificar como duas crianças desacompanhadas puderam seguir viagem sem autorização dos pais. Dormiram em uma pousada, comeram (pouco: a grana era curta), rodaram de um lado para o outro durante dois ou três dias, atravessaram fronteiras estaduais e voltaram para casa por seus próprios meios sem jamais serem impedidos, interpelados ou investigados se tinham autorização dos pais para tanto. Mas nada disso foi questionado. Pois já estava decidido: a culpa é da Internet. E aos pais deve-se recomendar, não que procurem transmitir aos filhos valores morais que os impeçam de fazer estas tolices, mas sim afastá-los da Internet.

A ignorância, meus amigos, é um problema danado de sério...

PS1: Em 1977 eu publiquei alguns artigos na edição eletrônica da revista PC World. Como estavam no ar no próprio sítio da IDG, a editora da PC World, achei que não faria sentido duplicá-los em minha página. Mas a Internet é dinâmica por natureza e, com a reformulação do sítio da IDG, os artigos foram removidos. Como permanecem atuais (há toda uma série sobre FAT 32), decidi pô-los à disposição de vocês em [http://www.bpiropo.com.br]. Bom proveito.

PS2: Depois de ver aqui menção à tecla "Windows" (aquela com o logotipo de Windows situada do lado esquerdo dos teclados Windows, entre Ctrl e Alt) o Pedro Paes me recomendou o utilitário WinKey, um programa indispensável para quem tem teclado Windows. Que não apenas permite combinar a tecla Windows com qualquer outra para fazer coisas inacreditáveis (inclusive carregar qualquer programa) como traz embutido um "Task Manager" para Windows 95/98, invocado combinando a tecla Windows com F10, que lista os processos e tarefas que estão rodando em um dado momento e permite encerrar qualquer um deles. Além de ser um achado, o WinKey tem uma qualidade absolutamente irrefutável: é grátis. Se seu teclado é Windows, corra e baixe-o de [http://www.copernic.com/winkey/].

B. Piropo