Sítio do Piropo

B. Piropo

Assunto Referente :
Volte
15/11/1979
O Emissário de Ipanema:
Mitos e Verdades
Referente a: Globo On

Engenheiro Benito P. Da-Rin

A nova Geni

Neste último sábado, dia 8 de maio, às nove horas da noite, terminou enfim a fase final da obra de reparo do Pilar 505 do Emissário Submarino de Esgotos de Ipanema com a fixação do último parafuso de suporte da junta do Pilar 506. Duas horas antes o Emissário já havia entrado em funcionamento à plena carga, encaminhando para seus difusores situados a cerca de 4 km da Praia de Ipanema os 6 metros cúbicos de esgotos que ali descarrega a cada segundo, encerrando uma tarefa prevista para seis mas que se estendeu para exatos onze dias.

Nas quase quatro décadas em que estou envolvido com o saneamento do Rio de Janeiro vi pela primeira vez – e com enorme satisfação – as autoridades envolvidas agirem com absoluta transparência diante de uma situação deste tipo, divulgando todas as informações pertinentes sem nada esconder, mesmo as que eventualmente lhes eram desfavoráveis. Eu mesmo sempre estive convencido de que esta é a coisa certa. Quem age de forma limpa e honesta nada tem a esconder.

O resultado, para mim, foi um tanto inesperado. Até me dar conta de que não podia ser diferente: depois de décadas de desinformação, o conceito do Emissário junto à população não é dos melhores e a imprensa, por sua vez, não fez mais que ecoar este sentimento. Todo o mundo usou seu direito de dar palpite sobre o assunto (direito, aliás, que eu não discuto e respeito profundamente; acharia mais profícuo, no entanto, que as pessoas que a ele recorrem procurassem se informar melhor sobre o assunto para não difundir conceitos distorcidos). A conseqüência de tudo isto foi que o acidente transformou-se em um episódio que detonou uma campanha de desinformação cujo resultado foi transformar o Emissário na Geni do carioca. A pobre Geni de jogar dejetos. Como se não bastasse os que recebe no sentido real, recebeu-os também no figurado.

Dos primeiros o Emissário sempre se desincumbiu galhardamente, diluindo-os e dissipando-os tão eficazmente que deles quase não há mais sinal a um quilômetro do ponto de lançamento (como têm demonstrado cabalmente vinte e cinco anos de campanha de monitoragem com coletas de amostras e análises bacteriológicas). Já os que recebeu no sentido figurado possivelmente causaram danos imerecidos e talvez irrecuperáveis à sua reputação.

Dias antes do início da obra li em um dos maiores jornais cariocas um artigo de fundo discutindo a importância dos esgotos. O autor, segundo o jornal um diplomata aposentado, afirmava que "soube" que o projeto do Emissário incluía uma estação de tratamento nas Ilhas Cagarras, que no entanto não foi construída. Não é verdade. E, se fosse, a obra teria sido sumariamente descartada após o mais elementar estudo de viabilidade técnica que considerasse os custos de abastecer tal estação com insumos básicos como energia elétrica e água potável, sem levar em conta as dificuldades de efetuar manutenção em equipamentos de grande porte nas Ilhas Cagarras. Impossível, não é – mas economicamente inviável, certamente seria. Não obstante, a afirmação obtida de oitiva foi publicada como se verdadeira fosse em um dos jornais de maior circulação do país. Eu de fato acredito que o cavalheiro em questão não mentiu e tenha realmente ouvido dizer semelhante sandice. Já publicá-la sem verificar a veracidade é outra coisa. Mas em se tratando da nova Geni, verificar para que?

No domingo, 25 de abril, em uma emissora de rádio especializada em notícias uma repórter informava que algumas das praias apresentavam um certo grau de poluição "devido ao início das obras de conserto do Emissário". A jornalista não mentia, apenas deduziu errado. Acredito que a poluição existisse. Mas seguramente ela não era devida às obras, pois estas sequer haviam começado: apesar de anunciadas para aquele dia, dificuldades técnicas adiaram o início para a terça-feira seguinte. Até aquele domingo nada havia mudado e o Emissário continuava funcionando normalmente. Mas, se havia poluição, a culpa certamente seria das obras do Emissário. Afinal, Geni é para isso mesmo.

Não faltou vontade de esclarecer. Eu mesmo, representando a CEDAE, participei de um debate promovido por uma das ONGs interessadas no problema. Durante o qual assisti o representante do Clube de Engenharia informar que "ouvira dizer" que houve um erro de construção do Interceptor Oceânico (uma das grandes galerias que contribuem para o Emissário) e por isso o fundo da galeria seria mais elevado no final que no início. Disse ainda que essa era a causa do transbordamento de esgotos na Enseada de Botafogo. O que, evidentemente, não é verdade. Os eventuais extravasamentos na Enseada são oriundos de dois rios, o Berquó e o Banana Podre, cujos cursos naturais os levariam a desaguar na Praia de Botafogo e foram interligados ao Interceptor justamente para evitar que nas ocasiões de tempo seco lancem na Praia suas águas poluídas por esgotos oriundos das favelas e de ligações clandestinas, jamais para lançar os esgotos do Interceptor na Enseada. No entanto, uma afirmação falsa, obtida por "ouvir dizer", é feita em público pelo representante de uma instituição respeitável sem se dar ao trabalho de verificá-la. Em se tratando da Geni, o trabalho não vale a pena.

Houve, é claro, quem se aproveitasse do acidente para os fins mais diversos, como divulgar soluções alternativas. Eu assisti a uma reportagem em um jornal de televisão sobre uma máquina que, segundo a repórter, era capaz de "transformar esgoto em combustível". Não é bem assim. A máquina existe mesmo, mas extrai combustível da fração orgânica do lodo removido do esgoto (portanto para usá-la é necessário antes extrair o lodo do esgoto). E, segundo a própria reportagem, para gerar combustível é preciso aquecer o lodo a 450 ºC, o que exige o dispêndio de cerca de 430 quilocalorias por quilo. Se o poder calorífico do combustível produzido por um quilo de lodo for menor que esse, perde-se energia ao invés de produzi-la (algo assim como pagar trinta reais por um bilhete de loteria para concorrer a um prêmio de vinte, façanha da qual até o momento somente anões do orçamento conseguiram tirar proveito). Mas eu não discuto os méritos da máquina. Até pode ser que existam. O que discuto é a evidente parcialidade com que a trêfega jornalista abordou o assunto, ao fechar a matéria desinformando que "uma máquina destas pode substituir o Emissário de Ipanema". E, depois de uma pausa que a ela pareceu inteligente, acrescentar, referindo-se ao Emissário: "que só serve para poluir a praia...". Com isto ela demonstrou uma inigualável aptidão para dizer bobagens ao juntar em uma única frase uma inverdade, uma dedução falsa e a capacidade de meter o bedelho onde não foi chamada tornando pública uma opinião pessoal indevida em um jornal de televisão, já que "uma" daquelas máquinas não substitui o Emissário, ele serve para controlar a poluição nas praias e não para polui-las e a matéria era sobre a máquina, não sobre o Emissário. Mas a moça não poderia perder a oportunidade de parecer espirituosa e jogar todo seu talento na Geni...

A parcialidade não se restringiu apenas ao que foi divulgado. Estendeu-se também ao que não foi. Uma semana antes de iniciar-se a última fase da obra, visando justamente evitar o lançamento de esgotos na Enseada de Botafogo – cuja pequena renovação de águas enseja o prolongamento dos efeitos do despejo de poluentes – a CEDAE efetuou a interligação de duas grandes tubulações na Praia de Ipanema, o que exigiu a interrupção do bombeamento através do Emissário e o lançamento de esgotos nos Costões do Pão de Açúcar e do Vidigal por algumas horas. O despejo de esgotos foi divulgado pela CEDAE e amplamente repercutido pela imprensa. Eu mesmo gravei entrevistas para duas emissoras de TV informando que, por se tratar de lançamentos por períodos limitados em mar aberto e em pontos onde as condições de diluição e dissipação de poluentes eram favoráveis, talvez os efeitos fossem pouco importantes. Porém, como eles somente poderiam ser avaliados no dia seguinte, melhor seria evitar o banho. Assisti a ambos os jornais. Minha entrevista não foi ao ar certamente por compreensíveis razões de estética: no lugar de minha triste figura, mostraram jovens de biquíni enclausuradas nas piscinas dos hotéis, lamentando não poderem freqüentar as praias. No dia seguinte os dados do Município, fonte insuspeita, deram conta que, como eu imaginara, a Praia de Ipanema não havia sido afetada pelo lançamento. Mas, conforme o velho axioma segundo o qual "boa notícia não é notícia", o fato passou quase em branco.

Para culminar, duas ou três semanas antes de iniciada a fase final da obra, eu assisti apalermado a uma manifestação pública "contra o conserto do Emissário". Nunca, em toda a minha vida eu tinha cogitado que um dia haveria de testemunhar um movimento contra consertar alguma coisa. Só mesmo a Geni poderia inspirar um negócio daqueles...

O fato é que cansei de tanta desinformação. E por isto aceitei a incumbência de esclarecer as dúvidas sobre o assunto aqui no Globo On. Afinal, acompanho este Emissário desde muito antes de seu nascimento e conheço bem seus percalços e aventuras.

Mas antes de prosseguir, uma informação: meu cargo na CEDAE é eminentemente técnico (sou assistente do superintendente de operações e manutenção de esgotos). Não tenho, na Empresa, nenhuma função de natureza política. Não pertenço nem jamais pertenci a sua direção. E não tenho compromisso algum exceto com a verdade e com a CEDAE como instituição. Afinal, dediquei a ela praticamente toda minha vida profissional e fui recompensado com aquilo que de mais precioso se pode amealhar na vida: amigos e conhecimento. Tudo que sei, ou quase tudo, devo à CEDAE, que me deu oportunidade de aprender praticando. E a maioria de meus amigos foram feitos nela ao longo destes quarenta anos de trabalho. Portanto, a tarefa foi aceita por achar que era minha obrigação fornecer as informações que tenho sobre um assunto tão controverso e prestar esclarecimentos imprescindíveis sobre uma obra de engenharia que goza imerecidamente de um péssimo conceito junto à população a quem serve justamente por jamais ter tido quem discutisse o assunto com clareza e honestidade. E é exatamente isso que pretendo fazer aqui.

Combatendo a desinformação

Eu sei que defender Geni é o tipo da missão inglória e espinhosa (ao menos enquanto não chega o Zepelim e seus canhões). Especialmente quando esta Geni se desincumbe de uma faina de glamour tão escasso quanto a do Emissário. Mas vou me arriscar. Afinal, quem produz esgotos não é o Emissário, somos nós. E, depois de produzido, há que se fazer algo com ele. O Emissário é apenas uma das soluções. Talvez não a melhor, mas certamente não a pior. E, como demonstram os resultados da monitoragem, o de Ipanema tem cumprido sua missão com garbo. Sendo, então, os inimigos a desinformação e o desconhecimento, a única maneira de combatê-los que conheço é com a verdade. Tendo em mente este objetivo e procurando evitar o uso de termos técnicos que em geral só servem para confundir o leigo, vou então tentar responder às perguntas que hoje parecem mais afligir o carioca: o Emissário polui as praias? Se não polui, de onde vem esta poluição? Por que seus pilares são tão frágeis? Por que a recuperação do Pilar 505 exigiu uma obra tão pesada, cara e demorada? Que danos ela causou ao meio ambiente? E, finalmente: o que é preciso fazer para resolver o problema definitivamente? Será que vale a pena ou é melhor construir outro Emissário?

Então vamos por partes.

Para que serve o Emissário?

A serelepe repórter de TV que afirmou que o Emissário de Ipanema só serve para poluir as praias se engana. Ao contrário, ele as protege. Há milhares e milhares de dados resultantes de análises de laboratório para comprovar isso. Desde 1974, um ano antes do Emissário entrar em carga, a CEDAE coleta regularmente amostras de água do mar na chamada "área de influência do Emissário", em frente às praias de Ipanema e Leblon, e nelas executa diversas análises, dentre as quais a de colimetria, que detecta a presença de coliformes fecais, microrganismos presentes nas fezes e que por isso são usados mundialmente como indicadores da poluição por esgotos. Os dados estão disponíveis (a maioria deles já foi publicada em trabalhos discutidos em congressos e seminários técnicos nacionais e internacionais) e comprovam que o nível de contaminação por esgotos muito raramente se mantém acima do padrão aceitável além de um círculo com raio de um quilômetro com centro no ponto de lançamento. Como este ponto se situa a quatro quilômetros da praia, o Emissário não contribui para a poluição da chamada "zona de balneabilidade", uma área compreendida entre a praia e os primeiros trezentos metros a partir da linha de arrebentação das ondas, onde os "esportes de contato primário" como o banho de mar e o mergulho são permitidos. Portanto, a resposta é não, o Emissário não polui as praias. Nem mesmo na hipótese mais desfavorável e pouco provável que as correntes marinhas conduzam os esgotos diretamente para a praia: a distância do lançamento foi calculada de tal forma que, considerada a velocidade das correntes, a diluição inicial dos esgotos pelos difusores, sua dispersão durante o deslocamento na direção da praia e o decaimento da concentração de coliformes (e dos microrganismos transmissores de doenças) pelo natural efeito bactericida das águas do mar, a poluição jamais alcançará a praia em níveis acima do permitido.

De onde vem a poluição

Não obstante, volta e meia sabe-se que as Praias de Ipanema e Leblon estão poluídas por esgotos. Se estes esgotos não são provenientes do Emissário, então de onde vêm?

Esta pergunta é fácil de responder. Porém, admito, aceitar a resposta já não é tão fácil. Pois a poluição eventual provém dos canais de Jardim de Allah e Visconde de Albuquerque, e seria muito mais razoável esperar que um tubo que descarrega seis metros cúbicos por segundo de esgoto puro a quatro quilômetros da praia tenha um potencial poluidor muito maior que dois canais que descarregam água (água suja, vá lá, mas água) na beira da praia. Mas nem tudo que parece inverossímil é inverídico, portanto invoco o benefício da dúvida: acreditem em mim no início da explicação que, certamente, estarão convencidos no final. Como estou tão seguro disso? Ora, por saber que estou dizendo a verdade e a verdade não admite subterfúgios.

Em princípio não deveria haver esgotos em nenhum destes canais. Aliás, este é talvez o principal motivo do mau conceito que o Emissário goza junto ao público: no afã de esconder a poluição eventual em Ipanema e Leblon, durante anos maus administradores se recusaram a discutir o problema abertamente. Afinal, como admitir perante a população que as praias ainda estavam poluídas depois de gastar "aquele dinheirão" construindo o Emissário? Ocorre que além de ter direito às informações, a população não é estúpida e cedo ou tarde constataria, como de fato constatou, a poluição das praias. O resultado não poderia ser outro: a culpa recaiu sobre o Emissário, que nada tem a ver com isso.

Enfim: não deveria haver esgotos nos canais, mas há. E por que há?

No Canal de Jardim de Allah, diga-se a bem da verdade, há cada vez menos. Um esforço bem sucedido da CEDAE, das autoridades ambientais do Estado, do Município e de organizações privadas de defesa do meio ambiente, que detectam e denunciam despejos de esgotos ensejando que a CEDAE os elimine, vem reduzindo gradativamente os lançamentos na Lagoa oriundos de ligações clandestinas. Recentemente a CEDAE e o Município empreenderam um trabalho conjunto com a execução de um punhado de obras visando a eliminação de lançamentos de esgotos à Lagoa. Com a reforma das quatro elevatórias às margens da Lagoa a CEDAE eliminou eventuais extravasamentos. Paralelamente, um trabalho persistente (que exige a paciência de um chinês) tem eliminado paulatinamente as ligações clandestinas às galerias de águas pluviais. O resultado foi a sensível melhoria das condições das águas da Lagoa, e conseqüentemente do Canal do Jardim de Allah. Mas a rede de esgotos é antiga e sujeita a obstruções e arrebentamentos, com o conseqüente extravasamento para a Lagoa (o Rio de Janeiro foi a quinta cidade do mundo a dispor de uma rede de esgotos; há trechos com quase século e meio; a da orla da Lagoa não é tão antiga, mas data da primeira metade deste século). E sempre aparece mais um "esperto" ligando indevidamente seus esgotos à rede de águas pluviais. Por isso, apesar dos esforços conjuntos da CEDAE e autoridades municipais, ainda há alguma poluição eventual no Canal de Jardim de Allah.

No Canal da Visconde de Albuquerque a situação ainda é mais complicada. Ali, além das eventuais ligações clandestinas e da fragilidade da rede antiga, há o problema permanente da contribuição de esgotos oriundos de favelas, particularmente da vertente Gávea da Rocinha. Para implementar uma rede de esgotos sanitários em uma favela não há apenas que superar a crônica escassez de recursos. Há ainda que resolver um problema técnico bastante complexo, especialmente quando se trata de favelas de encosta. Ao contrário da rede de água potável, que funciona sob pressão e usa tubulações de menor diâmetro, a rede de esgotos escoa por gravidade. Se for submetida a pressão, extravasa em plena via pública. Em uma favela de encosta, isso representa um obstáculo virtualmente intransponível. Algumas soluções alternativas foram propostas, nenhuma delas inteiramente satisfatória. De fato, o esgotamento sanitário de favelas é um dos maiores desafios à engenharia sanitária dos países em desenvolvimento. E enquanto o problema dos esgotos da Rocinha não for resolvido, o Canal da Visconde de Albuquerque contribuirá com alguma poluição para a Praia do Leblon.

Mas se há esgotos nestes canais, certamente haverá em muito menor quantidade que no Emissário. Então o que me leva a afirmar que a poluição das Praias de Ipanema e Leblon provém deles e não do Emissário? Fácil: o fato dos canais lançarem os esgotos na própria praia e, o que é pior, na superfície. Os principais fatores de redução da carga poluidora dos esgotos desaguados pelo Emissário são a profundidade de quase trinta metros e o uso de difusores. Só isso reduz a concentração de coliformes algumas ordens de grandeza. Os canais descarregam menos esgoto, é verdade, porém concentrados em apenas dois pontos (enquanto o Emissário emprega dezenas de difusores) e junto à superfície. O efeito é brutal.

Espero que minha argumentação tenha sido suficiente para convencê-lo de que o Emissário não é o responsável pela eventual poluição das Praias de Ipanema e Leblon. Mas se não foi, sugiro que você recorra a uma fonte isenta: o sítio da Secretaria do Meio Ambiente da Cidade do Rio de Janeiro na Internet (em [http://www.rio.rj.gov.br/smac/balneab], um órgão municipal que nada tem a ver com a CEDAE e que, ao contrário, a tem criticado severamente em seu (muito justo e compreensível, diga-se de passagem) afã de manter as praias em boas condições. Visite o sítio e leia, na página correspondente ao Leblon: "Esta praia normalmente apresenta-se imprópria para o banho por causa dos canais da Rua Visconde de Albuquerque e do Jardim de Alah, fontes constantes de poluição". Portanto, o Emissário não tem nada com isso. Não sou eu quem o diz, é o Município.

Porque os pilares são tão frágeis?

Isto posto, vamos ao outro ponto que tem provocado grandes discussões: os pilares do Emissário. Porque são tão frágeis? Bem, para entender isso é preciso ter uma idéia do que é o Emissário e nos reportarmos à época em que ele foi projetado.

O Emissário é uma tubulação. Mas não é um tubinho desses que se encontra por aí ao Deus dará. É um senhor tubo de concreto armado, com mais de quatro quilômetros de extensão e um diâmetro interno de quase dois metros e meio. É claro que não dava para fazer um bicho destes de uma enfiada só. Ele foi então subdividido em tubos menores. Os comprimentos variam, mas no trecho que nos interessa cada tubo mede exatos cinqüenta metros de comprimento, tem um diâmetro externo de quase três metros (aproximadamente a altura que vai do piso ao teto de um apartamento moderno) e pesa cerca de duzentas toneladas. O Emissário começa na Praia de Ipanema, em frente à Rua Teixeira de Freitas, e penetra mar adentro até o ponto de lançamento. Ao contrário do que pensa a maioria das pessoas, não é enterrado no fundo do mar: a maior parte dele desenvolve-se acima do leito do oceano, em uma altura que chega a pouco mais de dois metros no trecho onde o afastamento e maior e a menos de zero (o tubo é enterrado) no trecho próximo da Praia. Cada junta entre dois tubos sucessivos se apoia em um pilar cravado no leito do oceano. E é aí que se esconde o perigo...

Tudo isso foi projetado há mais de trinta anos. Ao contrário das "autoridades" que ultimamente têm deitado falação sobre o Emissário, eu não sei disso por ouvir dizer. Muito pelo contrário: sei porque acompanhei passo a passo. Meu primeiro trabalho como engenheiro diplomado foi coordenar a Operação Cartões à Deriva 64, uma das atividades preparatórias do projeto (aparentemente, responsabilidade demais para um engenheiro recém formado, mas nem tanto se considerarmos que eu tinha uma razoável familiaridade com o assunto, pois em 64 já trabalhava há cinco anos como auxiliar de engenheiro no órgão que desenvolveu o projeto). Tratando-se de uma obra de grande envergadura, empregou-se o estado da arte da tecnologia disponível. O problema é que estávamos nos anos sessenta e a tecnologia era a da época. Os pilares foram projetados de acordo com ela para resistir a todos os esforços previsíveis: do peso próprio e das cargas, empuxo, correntes marinhas, ondas, o diabo. E a estes sempre resistiram. Infelizmente não resistiram aos não previsíveis.

Existe um fenômeno chamado "fadiga do material". Ele foi descoberto graças ao progresso da indústria aeronáutica (na verdade, devido a uma série de acidentes aparentemente inexplicáveis ocorridos com um dos primeiros modelos de avião de passageiros de grande porte). Sua causa é a repetição de um esforço. Não um grande esforço, mas um esforço aparentemente incapaz de causar o menor dano à estrutura. Pequeno, porém pertinaz. Não é a intensidade, mas a insistência que provoca o desastre (quem tem mulher chata sabe do que estou falando; e antes que as feministas protestem: marido também, por que não?). Pouco a pouco, lenta mas progressivamente, a repetição do esforço vai enfraquecendo o material, que acaba por se romper. É isto que fragiliza os pilares do Emissário: o esforço repetitivo causado por um determinado tipo de onda, não muito intensa, mas persistente.

Quem diz isso não sou eu, mas a COPPE/UFRJ, a Coordenação do Programa de Pós Graduação em Engenharia da UFRJ. Que, quando se constatou a rutura do primeiro pilar, foi contratada pela CEDAE para determinar as causas do acidente. E chegou a esta conclusão depois de efetuar a modelagem matemática do fenômeno. E disse mais: disse que, na época em que o projeto foi desenvolvido, não havia como prever a ocorrência do problema com a tecnologia disponível (é bom lembrar que o uso de computadores nos projetos de engenharia somente veio a se tornar corrente duas décadas depois, nos anos 80). Portanto, não foi erro de projeto.

Bem, isto pode ser um consolo, mas não resolve o problema. O fato é que, exceto os pilares que permanecem inteiramente enterrados e portanto não sofrem o esforço repetitivo, todos os demais estão comprometidos. Ou já romperam ou, cedo ou tarde, romperão. Atualmente, descontando os que já foram recuperados, há setenta pilares comprometidos.

O caso do Pilar 505

O Emissário é uma obra de engenharia. E como toda obra de engenharia, necessita de manutenção e conservação. Por isso, desde o início, ele é periodicamente inspecionado por uma equipe de mergulhadores que verifica o estado da tubulação, dos pilares, juntas e difusores. Foi assim que se constatou a primeira rutura de pilar do Emissário em 1991.

Compreensivelmente, após o primeiro acidente e especialmente após o laudo da COPPE/UFRJ constatando o comprometimento dos demais pilares, aumentou-se a freqüência destas inspeções. A partir de um dado momento, ela passou a ser feita quase que continuamente, Como a verificação é minuciosa, o trabalho é lento. Leva cerca de dois meses para se inspecionar toda a extensão do Emissário. Um trabalho de Ariadne, que tão logo terminado é quase imediatamente reiniciado. Este constante recomeço garante que nenhum pilar permanece mais de dois meses sem ser inspecionado.

Não se trata de excesso de cuidado. Ao contrário. E a razão é simples. Um pilar não se rompe e tomba repentinamente. Antes disso, ele se inclina. Depois, apresenta uma rachadura horizontal na linha de rutura. E somente então rompe e tomba. O processo é lento e a experiência tem demonstrado que a freqüência com que as inspeções têm sido feitas permite prever a rutura antes que o pilar tombe. Pelo menos tinha sido assim até o ano passado.

Detectar a rutura antes do tombamento do pilar é crucial. Recuperar um pilar rachado é uma obra cara e complicada, mas como a rachadura do pilar não afeta o tubo, a obra pode ser feita mantendo o Emissário em funcionamento, sem derramar uma gota de esgoto fora da área dos difusores. Portanto sem provocar nenhum dano ambiental ou sanitário. Já recuperar um pilar tombado é uma obra muito mais séria que exige a interrupção do fluxo dos esgotos através do Emissário durante diversos períodos e seu desvio para pontos de lançamento alternativos, com todas as indesejáveis conseqüências que este desvio acarreta.

Eu sei que neste ponto cabe a pergunta: se é assim, por que a rutura do Pilar 505 não foi constatada com a devida antecedência e o tombamento evitado? Porque, lamentavelmente, as inspeções foram interrompidas ainda no primeiro semestre do ano passado.

Eu não vou discutir as razões disto. O objetivo deste artigo é esclarecer, não polemizar. A justificativa alegada pela alta direção da CEDAE de então foi falta de recursos para renovar o contrato da firma que efetuava a inspeção (o serviço é altamente especializado e exige o concurso de mergulhadores e outros profissionais que a CEDAE não conta em seus quadros, por isso há que ser contratado). Eu não questiono a razão apresentada. Mas, por favor, não culpem "a CEDAE" pelo descaso. "A CEDAE", ou seja, a instituição, seus empregados, seu corpo técnico e administrativo, estava plenamente consciente da importância e da urgência de retomar a tarefa interrompida e ávida para fazê-lo. Tanto assim que jamais deixou de reiterar a solicitação para que os serviços fossem reiniciados. Acreditem: estes mesmos dedos cansados que batucam neste teclado perderam a conta dos ofícios que digitaram sobre o assunto. Se não foram atendidos, definitivamente não foi por falta de esclarecimento e apoio técnico. Talvez tenha sido mesmo por falta de recursos, sei lá. Tenho cá minhas idéias, mas guardá-las-ei comigo.

O fato é que em janeiro, tão logo a direção da Empresa foi substituída, as inspeções recomeçaram. E, na primeira delas, constatou-se que o Pilar 505, situado a cerca de um quilômetro da Praia de Ipanema, mas ou menos a um quarto do comprimento do Emissário, havia se inclinado, rachado e jazia tombado sobre o leito do oceano.

A obra de recuperação

Não se tem idéia de quando ocorreu o tombamento. Presumivelmente, não muito antes de ter sido constatado pois, apesar da queda, a maciça estrutura de apoio jazia de lado, apoiada no leito do oceano mas se mantendo coesa, prendendo os dois tubos e mantendo a junta no lugar. Os tubos se desviaram do seu eixo longitudinal, mas como permaneciam justapostos no interior da junta, o esgoto continuava fluindo através deles até a área de lançamento. Havia, é verdade, um vazamento causado pelo deslocamento das pontas dos tubos no interior da junta. Mas sua vazão foi estimada entre sessenta e 180 litros por segundo, cerca de um a três porcento da vazão total. Embora em menor profundidade (cerca de dezessete metros), era algo perfeitamente suportável. Terrível teria sido se os tubos houvessem se desconectado e a totalidade da vazão fosse descarregada tão perto da praia sem o concurso de difusores.

A primeira providência foi imobilizar os tubos na nova posição para evitar a desconexão. Para isto, foi estabelecido um contato com a Petrobrás SA que, graças à sua imensa e bem sucedida experiência com obras subaquáticas de exploração de petróleo na plataforma submarina, já vinha assessorando a CEDAE no projeto da obra de recuperação definitiva dos pilares (que discutiremos adiante). Em seguida, contratou-se em caráter de emergência a própria Petrobrás para executar a obra de recuperação do Pilar 505. Que começou ainda em fevereiro, com a reconstrução da estrutura de apoio dos tubos e de um novo conjunto de pilares. Como isto não exigia a paralisação do fluxo do esgoto através do Emissário nem o desvio dos esgotos para pontos alternativos de lançamento, embora divulgada, esta fase desenrolou-se sem alarde.

A imprensa só se interessou pela fase final, que consistia em desconectar os dois tubos, removendo-os do interior da junta tombada com o pilar, reconectá-los sobre a nova estrutura de apoio e refazer a junta de vedação. Haveria que movimentar os tubos com imenso cuidado para não quebrá-los: um tubo de concreto de cinqüenta metros de comprimento por três de diâmetro pesando duzentas toneladas não se encontra com facilidade na loja de materiais de construção da esquina. E deveriam ajustar-se um ao outro sobre a nova estrutura com precisão de centímetros. Foi dureza. E nem deu pra tomar uma cerveja antes...

O problema não era apenas a obra em si, mas o fato dela exigir a interrupção do bombeamento através do Emissário durante a execução de certas operações cruciais. Como o esgoto que flui para o Emissário continuava a ser produzido na razão de seis mil litros por segundo (ou seis "toneladas", como prefere a imprensa, ignorando que em cada metro cúbico de esgoto há mais de 999 kg de água e menos de meio quilo de impurezas), haveria que se fazer alguma coisa com ele.

Não vou entrar em cansativos detalhes técnicos sobre o funcionamento do sistema de esgotos da Zona Sul do Rio de Janeiro. Portanto tentarei resumir. Nesta região, depois que entra na rede pública, fora eventuais extravasamentos o esgoto só pode sair dela por quatro pontos: os difusores do Emissário, o Costão do Pão de Açúcar, o Costão da Av. Niemeier e a galeria do Rio Berquó que deságua na Enseada de Botafogo.

O primeiro é, normalmente, o único. Os demais são utilizados exclusivamente em sérias emergências que exigem paralisação do sistema (falta de energia por períodos muito longos ou acidentes catastróficos). Deles, os dois costões são razoavelmente seguros por se situarem em mar aberto e apresentarem condições relativamente boas de dispersão e diluição (de fato, eram os pontos onde o esgoto foi lançado durante décadas antes de existir o Emissário e que foram mantidos justamente para fazer face a situações de emergência). O último, no entanto, é péssimo e a ele somente se deve recorrer quando não houver nenhuma outra alternativa: a Enseada de Botafogo, com sua pequena profundidade e baixa renovação de águas, é particularmente sensível a lançamentos de cargas poluidoras. Ao contrário dos esgotos lançados nos costões, cuja dispersão faz com que os efeitos do lançamento perdurem por períodos relativamente curtos e desapareçam inteiramente cessada a descarga, os despejos na Enseada causam danos mais graves e duradouros.

Para evitar o lançamento de esgotos na Enseada, antes de iniciar a fase final da obra de recuperação do Pilar 505, a CEDAE efetuou a interligação de duas galerias na Praia de Ipanema, o que permitiu desviar para o Costão da Niemeier grande parte da contribuição de esgotos de Copacabana e adjacências. O expediente foi muito bem sucedido: durante toda a fase final, apesar das sucessivas paralisações de bombeamento através do Emissário, a CEDAE não despejou esgotos na Enseada de Botafogo nem mesmo quando ocorreram chuvas (felizmente de pequena intensidade) durante o período. Deixo isto claro porque, na véspera do encerramento da obra, a Secretaria de Meio Ambiente da Cidade do Rio de Janeiro distribuiu uma nota à imprensa relatando que detectou redução da salinidade das águas na Enseada de Botafogo e informando que suspeitava que fora causada pelo lançamento de esgotos. Asseguro que não foi (se fosse, a concentração de coliformes teria sofrido um aumento proporcional à redução da salinidade, o que não ocorreu).

A fase final da obra foi cuidadosamente planejada. Foi traçado até um plano de contingência, que se propôs a realizar o impossível (prever imprevistos). Sua execução foi concebida em conjunto pelos técnicos da Petrobrás, COPPE/UFRJ, CEDAE e órgãos ambientais do Estado e do Município com o objetivo de reduzir as paralisações de bombeamento através do Emissário ao menor tempo possível, minimizando os danos ambientais. A obra foi prevista para ser executada no mínimo em seis dias, no máximo em dezesseis. Alguns imprevistos sobrevieram (inclusive uma ressaca violenta) e ela acabou sendo concluída em onze, por acaso a média exata dos dois valores. E foi extremamente bem sucedida. Os danos ao meio ambiente limitaram-se ao lançamento dos esgotos em mar aberto e o Emissário Submarino de Esgotos de Ipanema retomou o funcionamento à plena carga às sete da noite de sábado, 8 de maio, com seu Pilar 505 recuperado.

A solução definitiva

Durante todos estes anos, depois de constatada pela COPPE/UFRJ a fragilidade dos pilares, a CEDAE não permaneceu inerme. Começando pela avaliação da viabilidade de recuperar os pilares. Valeria a pena? Afinal, teoricamente o Emissário, construído há quase um quarto de século, estaria no final de sua vida útil e deveria estar operando em plena capacidade.

Isto, no entanto, está longe de ocorrer. Executado nos anos sessenta, quando a Barra da Tijuca era um recanto distante que servia apenas como refúgio de namorados, o projeto do Emissário contava com um crescimento populacional da região a ele contribuinte que acabou não se verificando. Com a abertura dos acessos à Barra da Tijuca, a Cidade voltou-se para lá. O resultado é que as projeções atuais indicam ser a capacidade do Emissário suficiente para dar conta do crescimento da vazão por mais duas a três décadas (na verdade, a vazão atual é cerca da metade da vazão máxima de projeto).

E quanto à estrutura, como está? Bem, muito bem. Afinal, Emissário é a tubulação. O resto são acessórios. E as inspeções indicam que todos os tubos estão em excelente estado. Jamais verificou-se uma obstrução, os difusores estão em perfeitas condições e, do ponto de vista estrutural, tanto os tubos como as juntas e estruturas de apoio estão em excelente estado. O único (e grave) problema são os pilares.

Seria possível recuperá-los? Bem, estudos realizados em conjunto pela CEDAE, Petrobrás e COPPE/UFRJ já há alguns anos, concluíram não somente que a recuperação é possível como também, após analisar diferentes opções, detalharam a técnica a ser empregada. O que tornou possível orçar os serviços. O custo da recuperação de todos os pilares comprometidos passa pouco dos trinta milhões de reais, enquanto a construção de um novo emissário ultrapassaria o dobro disto. Portanto, não resta dúvida que a recuperação vale a pena.

Tanto vale que, ainda no ano passado, a CEDAE licitou os serviços. A licitação foi concluída e já há um consórcio de empresas vencedor. Portanto, a depender dos trâmites legais e administrativos, a obra poderia ser iniciada amanhã.

O que falta? Bem, faltam os trinta milhões. A CEDAE não dispõe deles. Está buscando financiamento. Espero que agora, depois de todo este alvoroço causado pela obra de recuperação do Pilar 505, seja mais fácil conseguir.

Afinal, se tem uma coisa que aprendi na vida é que, de tudo, há que se buscar os aspectos positivos...

Benito P. Da-Rin