Sítio do Piropo

B. Piropo

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09/10/1997
Mulheres Públicas
Referente a: PC@World

Artigo de Olavo de Carvalho publicado em O Globo de 09/10/97
Primeiro caderno, pp 7 Seção Opinião
Reproduzido aqui com permissão do Autor
Olavo de Carvalho

Durante 50 anos a intelectualidade progressista martelou nos nossos ouvidos as seguintes máximas: a) que toda norma lingüística oficial é odioso instrumento de dominação política e de exclusão social; b) que os gramáticos e dicionaristas devem, portanto, limitar-se a registrar os usos lingüísticos da maioria, dizendo amém ao fato consumado e proclamando que vox populi, vox dei, mesmo quando o referido deus, do alto de sua onipotência gramatical, diz "nói vai" ou "nói fumo".

Por estúpida que fosse essa teoria, não aceita em nenhum pais alfabetizado, ela acabou vencendo as resistências. Hoje é ensinada em todas as escolas brasileiras, e quem quer que ouse contrariá-la se vê esmagado sob o peso de dois argumentos cientificamente irrefutáveis: a) você é um reacionário; b) cale a boca.

Mas, assim como no Estado nazista o legislador supremo, o Führer, não está obrigado pelas leis que ele mesmo estatui, assim também a esquerda nacional, após nos impor sua regra, afirma soberanamente seu direito de ignorá-la.

D. Lúcia Carvalho, deputada petista que os maus fados colocaram na presidência da Câmara Legislativa do Distrito Federal, conseguiu persuadir os redatores do Dicionário Aurélio de que a expressão "mulher pública", consagrada pelo uso popular como sinônima de "prostituta", é de um machismo atroz e não pode ser admitida. Segundo d. Lúcia, a semântica deve ser igualitária: se "homem público" é expressão dignificante, deve sê-lo também "mulher pública" — que passa a significar, então, as mulheres ilustres como a própria d. Lúcia. Fica revogada portanto a voz populi, instituindo-se em seu lugar a vox Luciae. Nas próximas edições do Dicionário, seremos informados de que Margaret Thatcher, Indira Gandhi e Golda Meir foram "mulheres públicas", como aliás sempre o afirmaram seus detratores.

É verdade que os dicionaristas consentiram apenas em registrar a nova acepção, sem suprimir por completo as antigas. Mas, com essa concessão, abriram um precedente perigoso.

A mudança, em primeiro lugar, denota uma rotação de 180 graus na doutrina semântica da esquerda: se antes era uma odiosa prepotência ensinar à maioria semiletrada os usos lingüísticos dos escritores célebres, agora se tornou muito democrático impor-lhe desde cima um giro semântico que nunca foi usado por escritor nenhum, muito menos pelo povo, e que na verdade brotou do nada, isto é, da inteligência criadora de d. Lúcia.

O dicionário deixa de ser então o registro dos usos consagrados, seja da elite intelectual, seja do povão: torna-se um meio de moldar comportamentos — de moldá-los segundo os cânones arbitrários inventados por uma igrejinha de manipuladores semânticos que não devem satisfação nem à tradição culta, nem aos costumes da maioria, mas apenas aos seus objetivos políticos.

Não é prudente discutir com os poderosos, diz a Bíblia, nem com os ignorantes, diz Aristóteles. Tenho portanto motivos religiosos e filosóficos para abster-me de uma polêmica com d. Lúcia. Limito-me a dirigir as seguintes ponderações ao meu prezado Joaquim Campelo Marques, um dos dicionaristas do Aurélio que ameaçam ceder às exigências dessa senhora.

1. D. Lúcia coleciona várias expressões sinônimas de "prostituta", entre as quais "mulher-dama", "mulher da vida", "mulher do mundo" e semelhantes, e as interpreta como expressões de uma "discriminação social da mulher". Ora, qualquer um que saiba ler percebe que, se há nessas expressões alguma discriminação, é contra a prostituição e não contra o sexo feminino. E qualquer indivíduo com mais de 15 anos de idade sabe que, na sociedade dita decente, a prostituição é mais execrada pelas mulheres do que pelos homens.

2. Longe de ser modos de dizer agressivos e insultuosos, essas expressões são, com toda a evidência, precisamente o contrário: são eufemismos, formas atenuadas e indiretas de designar alguma coisa ruim sem dizer-lhe o nome com todas as letras. Alguns desses eufemismos têm mesmo os tons róseos de uma imagem poeticamente idealizada. "Mulher dama" e "mulher de amor" são quase louvores. Outros — "mulher perdida" ou "mulher do fado" — denotam a intenção piedosa de atenuar a responsabilidade da prostituta, jogando sobre um destino adverso a culpa pelo seu estado. Expressam a simpatia masculina por aquelas a quem muitos deveram sua iniciação nas artes do amor.

3. Como o percebe qualquer escritor dotado de um pouco de sensibilidade lingüística, as expressões indiretas depreciativas ("mulher à-toa", "mulher vadia"), longe de manifestar uma discriminação machista, são usadas predominantemente pelas mulheres, ao passo que os homens, em geral, quando querem dizer "prostituta" no sentido brutal e pejorativo, empregam sem rebuços as duas sílabas do meio da palavra "deputado" (ou "deputada", pois aqui não se discrimina ninguém).

4. A expressão de preferências machistas ou feministas se dá no plano da fala, não no da língua — uma distinção clássica que d. Lúcia desconhece. As acepções registradas em dicionário são recursos da língua — forçosamente neutros em si, porque podem, na fala, adquirir conotações diversas e inversas. Premoldar a língua no intuito besta de limitar a fala é uma idéia que só ocorreria a pessoa totalmente ignorante de como funcionam as línguas. Registrada a expressão "mulher pública" como equivalente de "mulher estadista", o termo "estadista" adquirirá instantaneamente sentido irônico como sinônimo de "prostituta".

Diante dessas ponderações, advirto que:

1. D. Lúcia simplesmente não entende o que lê. Lê como um analfabeto funcional. É pessoa totalmente desqualificada para opinar em questões semânticas, quanto mais para decretar normas lingüísticas. Seu mandato de deputada não lhe confere autoridade intelectual e científica e sua intromissão em assuntos gramaticais é algo que está entre a tolice inconseqüente e o abuso intolerável.

2. Mas essa inconseqüência será cheia de conseqüências: se a semântica deve guardar perfeita equivalência entre os sexos, as expressões pejorativas que designam o amante profissional ou o amador de muitas mulheres terão de ser interpretadas como expressões de preconceitos antimacho. E ai o confronto de suscetibilidades imbecis de parte a parte não terá mais fim.

3. A rapidez com que essa gente da esquerda troca de princípios conforme o que lhe seja politicamente vantajoso (em gramática como em tudo o mais) mostra que não tem nenhum padrão de honestidade intelectual: seu reino é o do oportunismo.

4. D. Lúcia é deputada por um partido que segue a estratégia de Antonio Gramsci, na qual o controle do vocabulário popular é instrumento prioritário de conquista do poder. A nova semântica é apenas mais um passo da "revolução cultural" sorrateira e covarde, concebida para dar às forças de esquerda, gradual e imperceptivelmente, o completo domínio sobre a psicologia das massas, pervertendo a luta política em pura manipulação do inconsciente.

Um pais onde os homens de saber cedem a pressões de políticos em questões científicas é um pais que busca a desonra intelectual. E se o político a quem se cede é um ignorante, a subserviência intelectual perante ele se torna, para o cientista, desonra pessoal. Apelo portanto ao sábio Joaquim Campelo Marques para que reexamine, em tempo, a armadilha em que querem pegá-lo.

Olavo Carvalho é escritor.