Sítio do Piropo

B. Piropo

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07/08/2006

< Analytical Engine III: A Epopéia >


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Nas colunas anteriores vimos quem foi Charles Babbage, como era o mundo em que viveu e porque nele as “tabelas” – tanto as de logaritmos quanto as voltadas para fins específicos, como as de navegação – eram tão importantes. Vimos como ele engendrou a idéia de criar uma máquina para calcular e imprimir tabelas e vimos ainda os princípios matemáticos e mecânicos em que ele se apoiou para traçar seu projeto.

Projeto cuja execução exigia uma soma considerável de recursos. Tão considerável que não estava ao alcance do bolso de Babbage, mesmo levando em conta sua fortuna pessoal herdada de seu pai, próspero banqueiro. Levando em conta o vulto da soma necessária e a importância das tabelas de navegação para o interesse nacional da Inglaterra, que então disputava o domínio dos mares com Portugal e Espanha, Charles Babbage decidiu recorrer ao Governo Britânico para obter os recursos para montar sua Máquina Diferencial. E em 1822 divulgou uma carta aberta ao Presidente da Royal Society salientando a importância do engenho e solicitando fundos para sua montagem.

Neste ponto convém entender a posição de Babbage na sociedade Londrina da época, uma posição bastante diferente daquela que desfrutou no final de sua vida quando os insucessos o levaram ao descrédito.

Em 1914, cinco anos antes da visita à França que lhe inspirou a idéia da máquina diferencial, Babbage casara-se com Georgiana Whitmore, com quem veio a ter cinco filhos. Na época “Charles Babbage era uma figura de proa na sociedade de Londres e suas gloriosas festas das noites de sábado, às quais compareciam duzentas a trezentas pessoas, eram um local de reunião da elite intelectual liberal européia”. Ele era também um importante economista e político e suas teorias econômicas, centradas na importância das fábricas (não esqueçamos que até então a economia era basicamente artesanal e Babbage foi um dos líderes da revolução industrial) eram encaradas com grande respeito. Sua tese sobre o efeito do desenvolvimento da tecnologia de produção no porte das fábricas foi um dos pilares da teoria do desenvolvimento sócio-econômico do capitalismo elaborada mais tarde por Karl Marx.

Além disso, para apoiar suas idéias, logo após seu retorno de Paris em 1919 Babbage iniciou a montagem de um modelo elementar de sua máquina diferencial para demonstrar sua viabilidade técnica. Em 1922, quando publicou sua carta aberta, o modelo estava pronto e em funcionamento.

Na carta, Babbage discorreu sobre a importância das tabelas náuticas para a supremacia ma ritma e industrial da Inglaterra, a economia que representaria para a nação uma máquina que viesse a calcular e imprimir as tabelas dispensando o trabalho de centenas de computadores (se você estranhou a existência de “computadores” nos tempos de Babbage, leia as colunas anteriores) e, sobretudo, a maior precisão oferecida pelo engenho. Enfatizou a quantidade de erros encontrados nas tabelas náuticas calculadas manualmente na época ressaltando que “um erro despercebido em uma tabela era como um rochedo submerso em um mar inexplorado cujo número de naufrágios que havia provocado era impossível calcular”.

Diante de tão convincente argumentação, não causou surpresa o fato de Babbage ser recebido um ano depois pelo Chancellor of the Exchequer, o responsável pelo erário público britânico, que lhe concedeu um financiamento de mil e quinhentas libras esterlinas para iniciar o trabalho.

E assim foi feito. Em junho de 1823 Charles Babbage começou efetivamente a construir sua máquina capaz de efetuar e imprimir os resultados de diferenças de segunda ordem com números de seis casas decimais que, segundo suas previsões iniciais, estaria pronta em três anos. Assim começou a epopéia de Babbage para realizar seu sonho.

Ocorre que a tarefa era muito mais complexa do que parecia. Segundo o livro “Computer – A history of the information machine” de Campbell-Kelly & Aspray (editado pela Harper Collins que, se os leitores me permitem a observação, considero a obra mais completa e interessante que já li sobre a história da informática), “Babbage subestimou completamente tanto os recursos financeiros quanto técnicos que seriam necessários à construção do engenho. Ele estava na vanguarda da tecnologia de fabricação e embora maquinismos relativamente toscos como máquinas a vapor e teares mecanizados fossem de uso corriqueiro, dispositivos sofisticados como as máquinas para fabricar engrenagens [de precisão] ainda eram novidade. Na década de 1850 tais maquinarias seriam comuns e já existia uma infra-estrutura de engenharia mecânica que tornava sua fabricação relativamente fácil. Porém, embora não houvesse qualquer impossibilidade para a fabricação da Máquina Diferencial na década de 1820, Babbage pagou o preço do pioneirismo; sua tarefa era comparável à da montagem dos primeiros computadores na década de 1940: difícil e extremamente cara”.

Em conseqüência disto Babbage viu-se lutando em duas frentes. A primeira, o projeto e a montagem de sua Máquina Diferencial. A segunda, ainda mais difícil, desenvolver ele mesmo toda a tecnologia necessária para a fabricação. E, embora o funcionamento da máquina diferencial fosse conceitualmente bastante simples como vimos na coluna anterior, sua fabricação era imensamente complexa. Volte à coluna citada, examine sua Figura 9 que mostra a máquina diferencial montada recentemente no London Science Museum segundo as especificações originais de Babbage e imagine a dificuldade para fabricar algo semelhante dois séculos antes. E, se duvidar, visite o Museu e examine os desenhos e anotações que orientaram a montagem: são centenas de plantas de execução e milhares de páginas de anotações feitas de próprio punho por Babbage.

A tarefa era tão gigantesca que teve desdobramentos. De fato, muitos dos outros inventos de Babbage (citados na primeira coluna desta série) e grande parte de suas idéias que germinaram em livros, hoje consideradas importantes contribuições à teoria da economia fabril, derivaram de seus esforços para desenvolver técnicas de fabricação que ajudassem a montar sua Máquina Diferencial.

Uma tarefa titânica durante a qual tanto o prazo quanto os recursos originalmente disponíveis esgotaram-se enquanto os trabalhos ainda estavam apenas começando.

Em 1827, quatro anos após o início de sua epopéia, a tragédia abateu-se sobre Babbage. Neste ano ele perdeu seu pai, dois de seus filhos e sua mulher, então com apenas 35 anos. Tangido pela dor, Babbage praticamente abandonou seu sonho e viajou para a França, de onde retornou no final do ano seguinte. Com a máquina ainda em sua fase inicial e já sem recursos governamentais disponíveis, Babbage retomou o projeto passando a financiá-lo de seu próprio bolso. Em 1929, embora ainda longe da fase final, ele havia fabricado o suficiente de sua máquina para fazer uma demonstração prática de seu mecanismo.

Neste ano um grupo de amigos de Babbage solicitou nova audiência com o Primeiro Ministro britânico, o Duque de Wellington e conseguiu convencê-lo a visitar o local de fabricação da máquina. Persuadir o governo a levar avante um trabalho que não passava de “two tons of brass, hand-fitted steel and pewter clockwork” (duas toneladas de bronze, aço manipulado e um mecanismo de relojoaria de estanho) não foi tarefa fácil, mas o Duque liberou um financiamento adicional de três mil libras esterlinas e autorizou a contratação do engenheiro Joseph Clement para supervisionar o trabalho e coordenar a fabricação do ferramental necessário.

No final de 1830 Babbage decidiu levar adiante a fabricação da máquina em sua própria casa, em um prédio protegido contra incêndio que construiu onde se localizavam os estábulos. Clement “a man of great ego” (um homem de grande ego), recusou-se a trabalhar fora de sua oficina e não mais participou dos trabalhos.

Em 1932, nove anos após o início de uma montagem que deveria durar apenas três, somente um sétimo da máquina estava concluído e funcionando.

Ocorre que nesse período a mente inquieta de Charles Babbage já havia divisado um meio de melhorar extraordinariamente seu projeto inicial e fabricar uma máquina muito mais poderosa, capaz de efetuar “... six orders of differences, each of twenty places of figures, whilst the first three columns would each have had half a dozen additional figures” (seis ordens de diferenças, cada uma com vinte casas decimais, das quais as três primeiras colunas teria meia dúzia de casas adicionais). E, em 1934, quando os recursos novamente se esgotaram, já sem Clement e suas ferramentas, levou o projeto de sua nova máquina à consideração do então Primeiro Ministro, Lorde de Melbourne, solicitando um financiamento adicional para montá-la. Esse foi certamente seu maior erro. Um de seus biógrafos, B. V. Bowden, afirma textualmente: “His ambitious to build immediately the largest Difference Engine that could ever be needed probably delayed the exploitation of his own ideas for a century” (seu plano ambicioso de construir imediatamente a maior máquina diferencial que poderia ser necessária provavelmente atrasou a exploração de suas próprias idéias em um século).

Ocorre que até 1934 o Governo britânico já havia investido no projeto a bagatela de dezessete mil libras esterlinas (que, segundo avaliação recente, corresponderia a algo entre meio e um milhão de dólares americanos) e Babbage alegava ter gasto outro tanto de seu próprio bolso. E solicitar o financiamento para construir uma nova máquina depois de haver investido tal fortuna em uma ainda inconclusa não foi realmente uma idéia das mais brilhantes. O pedido foi recusado.

Apesar disso, nos oito anos seguintes, Babbage continuou sua luta para convencer as autoridades a lhe conceder o tão almejado e necessário financiamento.

Acontece que os tempos haviam mudado. No início dos anos 1840 a Inglaterra entrou em uma forte crise econômica (“The Hungry Forties”, os anos 40 famélicos) e os recursos escassearam. Alem disso a insistência de Babbage lhe havia angariado alguns inimigos. Um deles, o Reverendo Richard Sheepshanks, secretário geral da Royal Astronomical Society, declarou sobre a intenção de Babbage construir uma nova máquina diferencial, que era um despropósito “to press the consideration of this new machine upon the members of Government, who were already sick of the old one” (pressionar os membros do Governo para financiar esta nova máquina quando eles já estavam cansados da velha).

Pior ainda: no pleito que continuava encaminhando ao Governo Britânico solicitando mais recursos para montar essa segunda versão da máquina diferencial, Babbage cometeu um erro estratégico fatal: mencionou que estava desenvolvendo planos para uma máquina ainda mais revolucionária, a “Analytical Engine” (Máquina Analítica), muitíssimo mais poderosa que a máquina diferencial.

O que era a expressão da verdade. A “Analytical Engine”, sabemos hoje, já obedecia aos princípios fundamentais dos computadores mais modernos e só uma mente privilegiada como a de Babbage poderia concebê-la há dois séculos. Mas a simples menção de que estava cogitando sobre uma terceira máquina enquanto solicitava recursos para montar uma segunda sem sequer haver terminado a primeira foi definitivamente um erro incomensurável.

Não é portanto de surpreender que, em 1942, o então Primeiro Ministro George Pell, consultando o cientista George Airy sobre a nova edição da máquina diferencial, tenha recebido o parecer que ela seria “worthless” (inútil, sem qualquer valor).

E em 11 de novembro de 1842, quase vinte anos após haver iniciado a montagem de sua máquina diferencial, Babbage foi recebido por George Pell que lhe comunicou a decisão definitiva: o Governo de Sua Majestade não mais investiria na máquina diferencial.

Babbage continuou insistindo, publicando artigos em jornais e realizando palestras que acabaram por levá-lo ao ridículo, já que nessa altura suas máquinas eram consideradas quimeras irrealizáveis. E somente desistiu em 1851, aos sessenta anos de idade, vinte antes de sua morte.

Sua máquina diferencial jamais foi concluída. As mais de doze mil peças que haviam sido fabricadas e montadas foram fundidas como sucata.

Assim terminou a triste epopéia de Charles Babbage.

Durante anos a fio se discutiu nos meios científicos se alguma das máquinas diferenciais de Babbage efetivamente poderia funcionar caso fosse concluída. Para dirimir a dúvida em 1989, Doron Swade, Curador de Computação do London Science Museum solicitou a Georg e Edvard Schuetz que montassem a segunda máquina diferencial, justamente a mais complexa, obedecendo rigorosamente aos desenhos e especificações de Babbage. Durante a conversão dos planos originais em desenhos de fabricação foram constatados alguns erros que, segundo os construtores, pareciam introduzidos propositalmente para impedir o uso não autorizado dos planos originais. Eliminados estes erros, a máquina foi construída e montada (veja foto na coluna anterior), ficando pronta em 1991, à tempo de comemorar o ducentésimo aniversário do nascimento de Babbage. A montagem da impressora, também de acordo com o projeto original, foi concluída apenas no ano 2000.

Um ponto importante em relação à montagem da máquina: por determinação de Swade, toda a fabricação e montagem, embora usando tecnologia moderna, foi feita dentro das tolerâncias que seriam obtidas no século dezenove, já que uma das razões insistentemente alegadas para o fracasso da montagem de Babbage é que a tecnologia então disponível não seria suficiente para construir uma máquina com a precisão exigida.

Tanto a máquina diferencial quanto a impressora montadas no London Science Museum funcionaram perfeitamente, sem qualquer falha. O que comprovou cabalmente que, caso houvessem sido concluídas durante a vida de seu inventor, igualmente funcionariam.

Então porque não foram terminadas na época? Seria apenas devido à incompreensão das autoridades e à falta de financiamento?

Eu, particularmente, duvido.

Na biografia de Charles Babbage do “Free Online Dictionary of Computing” editado por Denis Howe há uma passagem para mim bastante esclarecedora. Trata-se do relato da visita que o filósofo inglês Lord Moulton fez a Babbage em seus últimos anos de vida. Diz Moulton:

One of the sad memories of my life is a visit to the celebrated mathematician and inventor, Mr Babbage. He was far advanced in age, but his mind was still as vigorous as ever. He took me through his work-rooms. In the first room I saw parts of the original Calculating Machine, which had been shown in an incomplete state many years before and had even been put to some use. I asked him about its present form. 'I have not finished it because in working at it I came on the idea of my Analytical Machine, which would do all that it was capable of doing and much more. Indeed, the idea was so much simpler that it would have taken more work to complete the Calculating Machine than to design and construct the other in its entirety, so I turned my attention to the Analytical Machine.” (Uma das lembranças tristes de minha vida foi a visita ao célebre matemático e inventor, Sr. Babbage. Ele já estava em idade avançada, mas sua mente continuava vigorosa como sempre. Ele me levou a visitar suas salas de trabalho. Na primeira eu vi partes da Máquina de Calcular original que já havia sido exibida em estado ainda incompleto muitos anos antes e jamais foi posta em uso. Eu lhe perguntei sobre seu estado atual. ‘Eu não a terminei porque enquanto estava trabalhando nela me ocorreu a idéia da minha Máquina Analítica, que fazia tudo o que esta era capaz de fazer e muito mais. Na verdade, a idéia era tão mais simples que exigiria mais trabalho concluir a máquina de calcular que projetar e construir a outra desde o começo, então eu voltei minha atenção para a Máquina Analítica”).

Foi, portanto, a idéia da Máquina Analítica que não deixou Babbage construir sua Máquina Diferencial. Afinal, por que despender tempo, esforço e dinheiro montando uma simples máquina de calcular quando se podia construir um computador completo?

Pena que, na época, esta idéia estivesse apenas ao alcance da mente privilegiada de Babbage. A única então capaz de entender o verdadeiro alcance de sua formidável Máquina Analítica.

Com cuja descrição encerrarei esta série na próxima coluna.

 

B. Piropo