Sítio do Piropo

B. Piropo

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22/01/2007

< Um número muito especial IV: >
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O pentagrama
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Vamos começar com a advertência usual: esta coluna abordará conceitos da matemática e da geometria mas é voltada sobretudo para leitores leigos, não especialistas em nenhum dos dois campos mencionados. O que traz dois desdobramentos: o primeiro, desejável, é que não apelarei para qualquer conceito avançado para demonstrar os tópicos eventualmente abordados. Procurarei elaborar raciocínios baseados em conceitos elementares como “a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180º” e na resolução de equações simples. O segundo, não tão desejável: isto poderá levar a uma eventual escassez de “rigor científico” e a um excesso de simplificação pelo qual os especialistas que vierem a dar com os costados nestas plagas haverão de me perdoar. Isto posto, vamos em frente.

Fechei a coluna anterior ; prometendo mostrar indícios da presença do nosso velho conhecido número Fi, da seqüência de Fibonacci e da razão Áurea em locais inesperados. Pois comecemos por um triângulo. Não um triângulo qualquer mas, especificamente, pelo triângulo isósceles da Figura 1. O que o distingue dos demais triângulos? Simples: não apenas ele é isósceles (ou seja, tem dois lados – e portanto dois ângulos – iguais) como também seus ângulos da base, além de iguais entre si, são iguais ao dobro do ângulo do vértice superior. Ora, como sabemos que dois de seus ângulos são iguais (a = a) , que cada um deles é o dobro do terceiro (a = 2b) e que a soma dos três é 180º (a + a + b = 180), fica fácil calcular o valor de cada um deles resolvendo o sistema de equações:

2.a + b = 180 ; a = 2.b

substituindo na primeira o valor de “a” obtido na segunda vem:

2(2.b) + b = 180

Logo:

5.b = 180 ou b = 180/5 = 36

donde:

a = 2.b = 72.

Seus ângulos são, portanto, a = 72º e b = 36º.

Figura 1: Triângulo isósceles onde a = 2b.

Você vê nele algo que o ligue à razão Áurea, número Fi ou algo assim? Não? Nem eu...

Mas vamos elaborar mais um pouco. Afinal, a verdade se esconde nos locais mais recônditos e é preciso alguma paciência para chegar até ela. Vamos traçar uma bissetriz (não sabe o que é isso? Fácil: uma reta que divide um ângulo exatamente ao meio). Mais especificamente, tracemos a bissetriz do ângulo “a” da esquerda da base de nosso triângulo. Isso nos deixa com uma triângulo com o aspecto da Figura 2, onde “batizamos” quatro pontos A; B; C e D. Assim, poderemos designar os segmentos de reta pelos pontos situados em suas extremidades (como os lados AB, BC e CA do triângulo e o trecho da bissetriz AD) e os ângulos pelos pontos situados em uma das extremidades de um lado, no vértice e na extremidade do outro lado, nessa ordem, como o ângulo DAC assinalado em verde na figura 2:

Figura 2: Triângulo com bissetriz.

Pronto. Agora, vamos usar alguns conhecimentos elementares de geometria para determinar todos os ângulos dos diversos triângulos que temos na figura.

Comecemos justamente pelo ângulo assinalado em verde, DAC. Quanto mede? Ora, sendo AD a bissetriz do ângulo CAB, que mede 72º, o ângulo DAC medirá justamente a metade, portanto 36º. Sabendo disso, e sabendo ainda que a soma dos três ângulos internos de qualquer triângulo é 180º, poderemos determinar o valor de todos os demais ângulos da figura fazendo algumas contas simples. O resultado é o mostrado na Figura 3 onde ângulos de 36º estão mostrados em verde, os de 72º em laranja e o único ângulo de 108º está assinalado em amarelo.

Figura 3: Medidas dos ângulos.

Olhe para nosso colorido triângulo da Figura 3. Encontrou algum Fi? Alguma razão Áurea? Não? Mas não desista assim tão fácil, vamos pôr um pouco mais de empenho. Afinal, todos conhecemos muito bem as relações entre triângulos semelhantes: seus lados homólogos (ou correspondentes, o que dá no mesmo) são proporcionais. E basta uma olhadinha para a Figura 3 para descobrir dois deles: os triângulos ABC e ADC. Para facilitar nossa vida vou destacar na Figura 4 o triângulo menor criando uma cópia dele ao lado do menor e batizar os lados de ambos os triângulos com as letras x; y e z.

Figura 4: Triângulos semelhantes.

Não entendeu por que tantos lados são iguais a “y”? Pois pense um pouco. Triângulos isósceles têm dois lados iguais, aqueles que se opõem aos ângulos iguais. Repare que não são apenas os triângulos ABC e ADC que são isósceles, o triângulo ABD também é (dois de seus ângulos medem 36º, veja na Figura 3), portanto seus lados AD e BD são iguais. E como o triângulo ADC também é isósceles, seus lados AD e AC são iguais. Logo, os segmentos BD; DA e AC são iguais entre si. Além disso, se você reparar no triângulo azul da esquerda, verá que z = x + y (ou seja: BC = BD + DC).

E então? Como disse o cavalheiro que caiu do vigésimo andar ao passar pelo terceiro, “até aqui tudo bem”?. Então vamos adiante.

Antes de derivar  as relações de que precisamos, para facilitar nossa vida e reconhecer com mais facilidade quais são os lados homólogos dos dois triângulos, vou pô-los na mesma posição. Mas não se esqueça: o triângulo ADC, à direita, deitado ou “em pé”, é rigorosamente o mesmo, com as mesmas medidas de lados e ângulos.

Figura 5: A razão áurea.

Pronto, aí está nossa procurada razão Áurea. Deu um pouco de trabalho, mas a encontramos. Se não entendeu como, preste atenção na figura 5 e veja as setas vermelhas indicando os lados homólogos cuja proporção está mostrada no centro da figura, ou seja, “z está para y assim como y está para x”. Mas como z = x + y (veja os segmentos coloridos no triângulo maior, na Figura 5) acabamos de encontrar nossa proporção Áurea. E vamos chamar esse triângulo de triângulo Áureo.

Note que no nosso triângulo Áureo menor, CAD, dividir o comprimento do lado pelo da base (relação y/x) resulta no número Fi, 1,61839... (indicador da razão Áurea). Pois bem: se você reparar na Figura 5 encontrará outro triângulo Áureo, o triângulo ABD. Nele, obtém-se a razão Áurea dividindo-se o comprimento da base pelo comprimento do lado (relação z/y; lembre que em um triângulo isósceles, a base é sempre o lado oposto ao ângulo diferente dos demais).

Agora pare e pense um pouco no que acabamos de fazer: desenhamos um triângulo isósceles no qual os dois ângulos iguais são o dobro do outro e demonstramos que existe uma razão Áurea entre seus lados e o segmento determinado pela bissetriz de um dos ângulos da base que, por sua vez, divide o primeiro em outros dois triângulos Áureos. Parece um pouco de prestidigitação matemática usando conceitos básicos da geometria Euclidiana, nada mais. O que nada tem de extraordinário.

Então, o que seria extraordinário nisso tudo?

O extraordinário é que o próprio Euclides, trezentos anos antes de Cristo, propunha em seus Elementos, Livro 2, Teorema 11, justamente o caminho inverso: construir um pentágono regular a partir de um triângulo isósceles como o da Figura 1 usando a razão áurea para determinar os lados do triângulo. Não pretendo descrever o procedimento em detalhe, mas pode-se encontrar uma boa descrição na página de Diego Diaz Fidalgo < http://www.astroseti.org/imprime.php?num=3567 > “Historia de la proporción áurea” (está em espanhol, mas o que interessa está logo no início do texto, no terceiro parágrafo para ser exato, e não deve ser difícil entender). A idéia de Euclides consiste em tomar um segmento como BC da Figura 5, usá-lo como lado maior do triângulo isósceles, dividi-lo na razão Áurea, e tomar o segmento BD como lado menor. Ou seja: Euclides sabia, e tomava como fato natural, que os lados de um triângulo isósceles em que os ângulos iguais medem o dobro do terceiro estão na razão Áurea.

Mas o que tem o pentágono regular a ver com tudo isso?

Bem, o pentágono regular (na verdade uma figura dele derivada, o pentagrama) é justamente o elemento central desta coluna. Não há figura geométrica mais cheia de relações áureas (e de mistério).

Figura 6: A circunferência circunscrita.

Mas, para chegar lá, vejamos como propôs Euclides a construção do pentágono regular com base no nosso conhecido triângulo da Figura 1. O primeiro passo é construir uma circunferência que passe pelos três vértices (é fácil: seu centro fica no ponto de encontro das mediatrizes – ou linhas perpendiculares que dividem um segmento ao meio – dos lados do triângulo). O resultado do primeiro passo é o mostrado na Figura 6.

Agora, de modo semelhante ao que fizemos na Figura 2, tracemos não somente a bissetriz do ângulo esquerdo da base como também a do direito. E vamos prolongá-las até que encontrem a circunferência. Com isto determinaremos mais dois pontos sobre esta circunferência que, somados aos três correspondentes aos vértices de nosso triângulo, nos dá os cinco pontos exibidos na Figura 7.

Figura 7: Dividindo a circunferência em cinco arcos iguais.

Usando seus conhecimentos de geometria fica fácil constatar que esses pontos dividem a circunferência em cinco arcos iguais (dica: a bissetriz de qualquer ângulo inscrito em uma circunferência divide o arco oposto pela metade). O que nos leva a uma imagem interessantíssima, exibida na Figura 8, obtida eliminando-se o segmento AC e unindo-se os pontos D e E da Figura 7.

Figura 8: O Pentagrama.

Olhou para a Figura 8 e nada viu de interessante?

Pois olhe bem. Ela é uma das coisas mais extraordinárias que a geometria jamais produziu e antes de chegar ao final desta coluna você estará convencido disso. Ela contém dois pentágonos regulares (um no centro da figura, claramente visível, outro obtido unindo-se os vértices situados sobre a circunferência), diversos triângulos Áureos (como logo veremos, um número infinito deles), um extraordinário conjunto de segmentos que mantêm a proporção áurea nos locais mais inesperados e, para coroar o conjunto, o pentagrama, a estrela de cinco pontas desenhada em azul, um dos símbolos mais antigos cultivados pela humanidade. Segundo Dan Brown, o autor de “Código Da Vinci” (que dedica várias páginas do livro ao Pentagrama, à proporção Áurea, e ao número Fi), o pentagrama “é considerado ao mesmo tempo mágico e divino por diversas culturas”. Se duvida, dê uma olhada em uma coleção de bandeiras das diversas nações e veja em quantas delas aparece uma ou mais representações do pentagrama. Consultando a <  http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_bandeiras_nacionais > Lista de Bandeiras nacionais da Wikipedia eu contei 38 bandeiras nacionais, representando países de culturas tão diferentes como Estados Unidos da América, Iraque, China, Camarões, Cuba e Chile, nas quais aparece o pentagrama. E certamente devo ter deixado escapar algumas (vá até lá e confira). Será por acaso?

Figura 9: razões Áureas.

Mas antes de nos fixarmos no pentagrama, voltemos aos pentágonos e triângulos da Figura 8. Começando pelos últimos. Veja, no lado esquerdo da Figura 9 (basicamente a mesma com que temos trabalhado, onde os segmentos que nos interessam estão destacados em cores e os demais foram acinzentados) os dois triângulos assinalados. Ambos são isósceles. No vermelho, nosso velho conhecido, os ângulos da base medem o dobro do ângulo do vértice. No verde, medem um terço (não entendeu por que? Olhe para os dois segmentos de reta vermelhos que partem do ponto B, veja que ângulos eles formam entre si e com os dois segmentos verdes que constituem os lados do ângulo DBE e entenderá). Pois bem: ambos os triângulos são Áureos. No vermelho, dividindo o lado pela base encontra-se Fi, o que indica que eles estão na razão Áurea. No verde, dividindo-se a base pelo lado, também encontra-se Fi (por que? Ora, porque ele é homólogo ao triângulo ABD da Figura 4, repare).

Agora, vamos aos pentágonos. Que, juntamente com os triângulos e pentagrama inscritos no círculo, formam um enorme conjunto de segmentos que podem ser divididos e subdivididos em diversos “pedaços”. Repare, do lado direito da Figura 9, os trechos destacados. Não vai ser preciso muito esforço para perceber que quase tudo ali dentro forma uma razão áurea. A relação entre os segmentos verde e azul (este último, por sinal, igual ao lado do pentágono regular inscrito), entre o azul e o vermelho e entre o vermelho e o negro é sempre igual a Fi. Ou seja: todos mantêm entre si a razão Áurea.

Agora, ao pentagrama. E é justamente daqui em diante que as coisas vão ficar interessantes. Primeiro, um pouco de trabalho.

Figura 10: Pentagramas e linhas auxiliares.

Vamos desenhar um círculo e nele inscrever um pentagrama, como já sabemos fazer. Obteremos o pentagrama em azul da Figura 10. Agora, vamos traçar as diagonais do pentágono regular formado no centro do nosso pentagrama. O resultado é um novo pentagrama, mostrado em vermelho na Figura 10. Depois desenhemos no triângulo superior do pentagrama maior as bissetrizes de seus ângulos da base, as linhas verdes e amarelas da figura. Em cada ponto de encontro da bissetriz com o lado externo, desenhamos uma linha paralela ao lado do pentágono (as linhas negras da figura) e de ambas as extremidades de cada uma traça-se novas bissetrizes, repetindo-se o procedimento “ad infinitum”  (tá bão, infinito é demais, vamos fazer isso apenas enquanto conseguirmos enxergar as linhas; mas fica estabelecido desde já que, idealmente, em um universo Euclideano onde os segmentos de reta são unidimensionais e portanto não têm espessura, o procedimento poderia prosseguir indefinidamente).

Isto feito, começando no pentagrama interno, vamos unir os pontos de cruzamento das bissetrizes com as extremidades das paralelas ao lado do pentágono, as linhas mostradas na cor magenta na Figura 10.

Percebeu a idéia? Pois então repita o procedimento ao longo de todo o pentagrama, linha por linha, nas demais “pontas” da “estrela”.

O resultado será alguma coisa parecida com a Figura 11, também conhecida por “Estrela Pitagórica” (lembra dos pitagóricos? Falamos deles lá na primeira coluna desta série). Foi desenhada por mim e um exame detido dela evidencia que o pendor para as artes gráficas, definitivamente, não constitui uma de minhas virtudes...

Figura 11: Estrela Pitagórica.

Muito bem. Agora olhe para a Estrela Pitagórica com atenção e me diga: quantos pentagramas você vê nela? E quantos triângulos Áureos? Quanto pentágonos regulares? Quantos segmentos dispostos na razão Áurea?

Perdeu a conta? Não encontrou nenhum? Pois vou ajudar destacando em cores apenas alguns dos poucos desses elementos. Repare na Figura 12.

Figura 12: triângulos, pentágonos, pentagramas....

Percebeu? Sim, o número de cada um desses elementos que pode ser encontrado no interior de um pentagrama tende para o infinito. E eles se entrelaçam, se encobrem, se completam, se conjugam, se complementam das formas mais diferentes, sutis e inesperadas. Além disso, cada segmento de reta da figura, sem exceção, mantém uma relação Áurea com algum outro segmento da mesma figura.

Isso é ou não extraordinário?

Ora, se levarmos em conta que o pentagrama, sob a forma de símbolo místico, vem sendo cultivado pela humanidade há milênios, muito antes de estabelecido o cristianismo (há vestígios que datam de mais de seis mil anos), se consideramos que Euclides atribuía um valor místico à razão Áurea, se tomarmos em consideração que em muitas (e diferentes) culturas esta relação também é conhecida há milênios por “divina proporção” (e isto desde muito antes da era cristã), não é de admirar que ele tenha sido adotado como símbolo da comunidade pitagórica, que esteja presente em tantas bandeiras e que, dependendo da cultura e da religião, seja associado ora a deus, ora ao diabo.

E esta é apenas uma das manifestações do número Fi na geometria...

Nas próximas colunas veremos outras. Mas não muitas, que o assunto já começou a se tornar cansativo...

 

 

B. Piropo