Sítio do Piropo

B. Piropo

< Coluna em Fórum PCs >
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24/12/2007

< Reminiscências... >


Fim de ano, época de festas, querendo ou não querendo a gente fica meio piegas (anote aí: “se ainda der tempo, incluir dicionário na lista de presentes de fim de ano”). Se a coluna é publicada na véspera de Natal, então, a pieguice é ainda maior. E se tudo isso coincide com a chegada da mensagem do amigo Paulo Couto informando que “a CompUSA acabou” e citando
< http://www.dailytech.com/CompUSA+to+Close+All+Stores+After+the+Holiday+Season/article9952.htm >
a fonte, a avalanche de lembranças é irreprimível...

Para quem não sabe do que se trata: a CompUSA é (ainda; só vai fechar depois dos feriados de final de ano) a mais antiga das grandes cadeias de lojas de informática dos EUA, uma das poucas que se estendia de costa a costa. Fundada em 1984 com duas lojas que vendiam apenas software, em cinco anos tornou-se uma rede nacional multibilionária de lojas de varejo, estilo “superstore”, vendendo principalmente hardware. Atingiu o auge durante os anos noventa. Há alguns anos, com o falecimento de Nathan Morton, seu diretor executivo e responsável pelo notável crescimento, a cadeia passou para as mãos do Grupo Carso SA, uma empresa mexicana do multibilionário Carlos Helú, entrou em declínio e começou a dar prejuízos. Em fevereiro deste ano passou por uma reestruturação que incluiu severos cortes de pessoal,
< http://www.dailytech.com/CompUSA+to+Close+Nearly+130+Stores/article6258.htm >
fechamento de 126 lojas e injeção de US$ 440 milhões em recursos para recuperar o desempenho das remanescentes. Não deu certo. Há duas semanas, diante de um prejuízo de quase US$ 50 milhões apenas no terceiro trimestre deste ano, a empresa foi vendida para a firma de investimentos Gordon Brothers Group que
< http://www.dailytech.com/CompUSA+to+Close+All+Stores+After+the+Holiday+Season/article9952.htm >
anunciou o fechamento das últimas 103 lojas CompUSA e a venda dos ativos. Quem desejar saber mais detalhes pode consultar os artigos
< http://www.dallasnews.com/sharedcontent/dws/bus/stories/DN-compusa_08bus.ART0.State.Edition1.2a45fcb.html >
“Gordon Brothers buys Dallas electronics chain CompUSA; stores to close” de Maria Halkias no Dallas Morning News ou < http://www.crn.com/it-channel/204703166 > “CompUSA To Close Up Shop” de Scott Campbell, no ChannelWeb.

Figura 1: Marca CompUSA.

Alguns de vocês, especialmente os mais jovens, que não viveram os tempos da malfadada reserva de mercado da informática, página infeliz da nossa história, passagem desgastada na memória das nossas novas gerações (obrigado, Chico), os que não conheceram a experiência igualmente gloriosa e abominável de, naqueles dias, entrar em uma “superstore” de informática nos EUA e sentir-se como menino de rua em loja de brinquedos de shopping, deslumbrando-se com o que vê mas proibido de tocar, estes certamente não entenderão o porquê de tanta alaúza e zum zum. Afinal foi apenas mais uma rede de lojas que fechou. Será que isso merece uma coluna?

Não, não merece. O que merece, especialmente nesta época em que as emoções estão à flor da pele e nos quedamos todos sentimentais, é o tipo de lembrança que a notícia desperta e a certeza de que vivemos novos tempos. O que não deixa de ter seu lado positivo, sem dúvida. Mas, como dizia o saudoso Tom Jobim, “é bom, mas é ruim”.

Este velho escrevinhador que vos fala começou a se interessar por computadores lá pela segunda metade dos anos oitenta em plena vigência da reserva de mercado.

Não sabe do que se trata? Bem, um economista explicaria diferente, mas vou tentar simplificar: reserva de mercado foi uma iniciativa da ditadura militar (que mui estranhamente contou com o apoio entusiasmado da esquerda radical) instituída em 1984 que, com o objetivo declarado de incentivar o desenvolvimento da indústria nacional de informática e com o propósito velado de favorecer meia dúzia de apaniguados do governo (realce a linha do dicionário na lista de presentes citada no primeiro parágrafo), proibia terminantemente a entrada em território nacional de qualquer produto ou bem de informática. Só se podia usar legalmente no país aqueles fabricados pela claudicante indústria brasileira.

O segundo objetivo foi alcançado com grande êxito: fortunas se fizeram graças à inexistência de concorrência e muitos industriais de ocasião ligados à ditadura se aproveitaram disso. Já o primeiro, deu xabu. Com a importação de todo e qualquer item referente  a informática totalmente proibida e sem qualquer concorrência exceto a previamente combinada entre eles mesmos, os magnatas da indústria nacional fabricavam micros obsoletos com processadores de oito bits e os vendiam a preços de PC. E fabricavam PCs igualmente obsoletos e os vendiam a preços de AT. Para que, então, tentar evoluir se qualquer porcaria que fabricassem teria a venda garantida por lei?

Pois a evolução da informática nacional continuou assim, estagnada, até que Fernando Collor, em 1992, aboliu a reserva de mercado, talvez uma das mais elogiosas decisões tomadas por um presidente “desse país”. O que não deixa de ser curioso: uma medida que beneficiava apenas meia dúzia de privilegiados e, não obstante, era fervorosamente apoiada pela esquerda, foi abolida por um presidente cassado por corrupção. Mais um exemplo de coisas estranhas que acontecem apenas no Brasil, único lugar onde traficantes se viciam e prostitutas atingem o orgasmo em pleno exercício profissional. Mas deixa isso pra lá, que estamos fugindo do tema...

Pois é, naqueles tempos a coisa era dura. Para se dispor de um computador decente, ou se recorria a um “executivo de fronteira” ou se apelava para um comportamento tecnicamente criminoso e se trazia do exterior, inclusive e principalmente do vicejante comércio paraguaio, o equipamento de que se precisasse. À socapa, naturalmente (hoje estou insuportável, eu sei; para facilitar eu bem que poderia ter usado “sorrelfa” ao invés de “socapa”...).

Meu primeiro disco rígido, onde cabiam inacreditáveis 40 MB (repetindo: MB, não GB), daqueles de 5,25”, altura dupla, do tamanho de um tijolo, pesando mais de um quilo, foi trazido assim, dissimulado no bolso de uma capa de chuva. Hoje, desembarcando do Paraguai em pleno verão envergando uma mais que suspeita capa de chuva, eu certamente seria preso como terrorista. Não sei como aquilo passou pela alfândega...

Mas nem todo o mundo podia fazer isso, de modo que a maior parte das coisas que realmente funcionavam eram fornecidas por profissionais especializados em, digamos, importabandear equipamentos de informática. Esta, conquanto ilegal, era a única forma de obtê-los. E, obtidos, havia que se os esconder. Sei de uma empresa especializada em artes gráficas que mantinha no escritório, no interior de um armário embutido, um valente MacIntosh (o único micro que naqueles dias suportava trabalhos gráficos de qualidade e como não tinha similar nacional seu uso no Brasil era mais proibido que o de entorpecentes). Para trabalhar, abria-se as portas do armário e sentava-se frente ao micro. Quando apareciam visitas, tirava-se a cadeira e trancava-se o armário. Levou anos até que o operador do MacIntosh pudesse sair do armário (sem duplo sentido, por favor...)

Pois é. Mas a reserva de mercado de informática era tão claramente estúpida (tanto assim que vigorou quase uma década e não resultou em nada de bom) que a prática de importabandear equipamentos disseminou-se até mesmo em locais insuspeitados. E foi graças a ela que, a trancos e barrancos, conseguiu-se criar uma geração de técnicos, especialistas e programadores competentes. Minha amiga Cora Rónai costuma dizer com justa razão que toda universidade brasileira deveria erigir, na praça principal do campus, uma estátua ao contrabandista desconhecido, a quem a informática brasileira deve sua evolução naqueles tempos tenebrosos.

Vocês, que se interessam por computadores e trafegam despreocupadamente nos corredores do Avenida Central aqui no Rio, que freqüentam as “megastores” de São Paulo, que encontram computadores, acessórios e suprimentos em qualquer loja de departamentos e até mesmo em supermercados por todo o Brasil, não fazem idéia de como era viver naqueles tempos em que dormia a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações (viva o Chico, de novo) e passava-se anos sem se ver um micro realmente moderno. Para saber a quantas andava a tecnologia no mundo havia que se contentar com as fotos dos artigos e anúncios das revistas importadas e olhe lá.

A não ser, é claro, que se viajasse ao exterior, especialmente aos EUA, onde o comércio de informática florescia. A estes viajantes era dado o direito a uma alegria fugaz: visitar as lojas especializadas americanas. E é aí que entra a CompUSA.

Já viu criança em loja de brinquedos? Já reparou no brilho de seus olhos? No sorriso meio besta, no ar apalermado, nas feições deslumbradas diante de tanta maravilha, sem saber para onde olhar, aonde ir primeiro? Pois era assim que a gente se sentia...

Minha primeira vez, aquela que nunca se esquece, foi lá pelo final dos anos oitenta. Não lembro bem em que cidade, a viagem foi longa e incluiu várias paradas. Mas lembro que foi em uma CompUSA.

Eu nunca tinha visto tanto material de informática em um só lugar, de micros a discos rígidos, impressoras, suprimentos, disquetes, o diabo. Não dava para comprar muita coisa (na verdade, para comprar até que dava, comparados com os do mercado brasileiro os preços eram ridiculamente baixos; não dava era para trazer...). Tive que me contentar com um único e solitário item que, curiosamente, foi um teclado Northgate, que hoje não existe mais, todo em metal, não muito pesado mas incrivelmente resistente, teclas macias, acionamento perfeito, o Rolls Royce dos teclados. Ficou comigo muitos anos, meu fiel companheiro atravessando insone noites sem conta de frenética programação C e assembly (naqueles tempos eu era dado a essa prática) e só sucumbiu quando minha namorada achou que estava muito sujo e decidiu lavá-lo em água corrente. Mas essa é outra história...

Depois daquela, as visitas tornaram-se freqüentes. Em 1991 eu comecei a escrever sobre informática em um tempo em que não havia Internet pública e por isso mesmo havia feiras de hardware e software por todo o mundo, as Comdex e afins, onde eram feitos os retumbantes lançamentos de produtos. O que fazia delas eventos imperdíveis para quem quisesse estar em dia com o que ocorria no mercado. E a maioria era realizada nos EUA.

Em 1992, como sabemos, finou-se a maléfica reserva de mercado da informática, de modo que já não era crime atravessar a fronteira com bens de informática. Isto tornou possível comprar coisas e trazê-las legalmente, embora dentro dos rígidos limites impostos pelas cruéis regras alfandegárias. E foi justamente a partir de então que a CompUSA chegou a ter mais de duzentas lojas espalhadas por todo o território americano. Portanto, fosse a feira onde fosse, sempre haveria por perto uma loja da rede CompUSA.

A algumas delas as visitas eram mais freqüentes. Em Miami, por exemplo, onde se realizavam a maioria dos eventos para a imprensa latino-americana, a loja da CompUSA não era das maiores, ficava longe do centro, bem ao norte, perto do cruzamento de duas freeways, 95N com 826W mas, apesar do efervescente comércio de informática do centro da Cidade e das lojinhas detrás do Aeroporto (estas somente conhecidas pelos iniciados nos ramos ocultos da ciência da informática), sempre merecia uma visita.

A outras, como a de Chicago, as visitas eram mais escassas. Não à cidade, onde as idas anuais eram quase obrigatória para as edições da extinta Comdex Spring, mas à loja propriamente dita, longe, fora de mão, sem metrô ou trem nas imediações, lá onde o diabo perdeu as botas. Acho que naquela só estive uma vez para nunca mais.

Mas havia algumas das quais me tornei freqüentador quase assíduo. A de San Francisco, por exemplo, é e será sempre inesquecível. Fica (ficava?) na Market, perto do Centro de Convenções onde se realizam os grandes eventos de informática da cidade que eu considero a segunda mais bonita do mundo. Dava para ir a pé e, mesmo quando não era “balloon day”, sempre em boa companhia: os coleguinhas da imprensa tupiniquim que transformam uma seção de compras em uma atividade lúdica e divertida. Ver o Abel Alves escolhendo um periférico comparando características que só ele conhece, o Paulo Couto só indo na boa, o CAT descobrindo coisas que ninguém mais é capaz de encontrar, o Xandó mantendo o ar sisudo mesmo enquanto faz compras (e, admito, o Piropo fazendo suas piropices junto à equipe de vendedores) era uma experiência única.

Outras duas, ambas em New York, me trazem gratas lembranças. A do Centro, esquina da Quinta Avenida com Rua 38 (que certamente ainda estará por lá pelo menos por mais uma semana, já que era das maiores da rede), onde eu comparecia sempre que estava hospedado em um hotel em Manhattan, e a do Queens, no Queens Boulevard, que eu freqüentava quando ficava na casa de meu filho que morou por lá durante quase uma década. Nesta última, que eu costumava visitar nas viagens de lazer com agenda livre e tempo disponível, passei tardes e mais tardes de lazer fuçando prateleiras em busca de artigos improváveis, por vezes de preço inacreditavelmente baixo.

Isso sem falar nas tantas outras CompUSA em que só estive uma vez, espalhadas pelos centros comerciais de cidades de porte médio como Lexington, San Jose, Santa Clara, subúrbios de Atlanta, enfim, em quase toda parte dos EUA. Era passar pela porta, anotar o local e voltar lá mais tarde só para ver as novidades. A que se vê na Figura 2 fica (ficava?) em Augusta, estado da Georgia, mas poderia ficar em qualquer outra já que as fachadas das lojas de “malls” eram todas iguais.

Figura 2: CompUSA de Augusta, GA.

Naquela época, ir a uma das lojas da CompUSA era visita obrigatória a quem estivesse nos EUA e se interessasse por computadores. Não dava para fugir. Depois começaram a aparecer as similares. Surgiram redes como a Circuit City e Computer City (esta já não existe mais), especializadas em informática, oferecendo preços melhores e, sobretudo, atendimento mais atencioso (a CompUSA, como sua concorrente Fry’s, na Costa Oeste, notabilizou-se por um atendimento peculiarmente pouco cortês). Depois vieram as grandes lojas que vendiam todo o tipo de artefatos eletrônicos, desde televisões, sistemas de som, geladeiras e máquinas de lavar até, naturalmente, computadores e mais tudo o que se puder conectar a eles, como a já mencionada Fry’s e a Best Buy. E, finalmente, até nos supermercados mais fornidos se encontrava uma bem sortida seção de informática de fazer inveja às “megastores” brasileiras. Em suma: os computadores banalizaram-se, equipamentos de informática tornaram-se eletrodomésticos como quaisquer outros (e não só nos EUA) e a CompUSA, além de perder grande parte de seu charme, ganhou uma feroz concorrência.

Pois é. Agora, acabou-se a CompUSA. E justamente no Natal.

Sinal dos tempos.

Daqui para a frente, sempre que eu olhar para meu notebook, comprado há pouco mais de ano na CompUSA da Market em San Francisco, vou fazê-lo com respeito. Ele vai se tornar o símbolo de um tempo que não volta mais.

Coisas da vida...

Incidentalmente: se porventura nesses tempos de Internet, que torna quase tudo universal, você estiver lendo estas mal traçadas em território americano antes de 2007 findar, procure a CompUSA mais próxima. Correndo. A loja vai fechar mesmo, eles estão querendo se ver livre dos estoques enquanto podem e os preços estão assustadoramente baixos. Tem câmara digital com zoom 3x e 6 megapixel por menos de cem dólares (veja no < http://www.compusa.com/ > sítio da empresa). Se der, aproveite...

 

B. Piropo