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B. Piropo

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27/10/2008

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Na coluna anterior vimos o que é e como funcionam os materiais semicondutores e chegamos a examinar uma de suas aplicações práticas, o diodo. Na de hoje veremos a mais importante delas, o transistor, um pequeno dispositivo que mudou o perfil de nossa sociedade e garantiu o Prêmio Nobel para seus inventores, William Shockley, Walter Brattain e John Bardeen em 1956, menos de uma década após tê-lo inventado.

Para não fugir muito do assunto desta série a explicação será dada de forma resumida e usando como exemplo um tipo particular de transistor, o MOSFET, por ser de longe o tipo mais comum nos circuitos eletrônicos digitais. A quem tiver interesse em informações mais detalhadas, sugiro uma visita à Wikipedia para consultar o verbete < http://en.wikipedia.org/wiki/MOSFET > MOSFET (acrônimo de Metal-Oxide-Semiconductor Field-Effect Transistor, ou transistor de efeito de campo de semicondutor de óxido metálico).

Para explicar o funcionamento de um transistor MOSFET usaremos como protótipo um transistor do tipo NPN, formado por duas regiões de material semicondutor tipo N (onde “sobram” elétrons), separadas por uma região de material semicondutor tipo P (onde “faltam” elétrons), imersas em um substrato de material semicondutor sem impurezas (em geral o silício).

Um transistor nada mais é que a justaposição de três camadas de material semicondutor, sendo a do meio – sempre menos espessa – de tipo diferente das camadas das extremidades.

Transistores formados pela inserção de uma camada tipo N entre duas camadas tipo P denominam-se transistores PNP. Evidentemente, transistores formados pela inserção de uma camada tipo P entre duas camadas tipo N chamar-se-ão NPN e, por serem mais comuns, serão usados aqui para explicar seu funcionamento.

Um transistor NPN pode ser representado esquematicamente pela figura 1.

Figura 1: Transistor NPN.

Do ponto de vista do fluxo de corrente elétrica em seu interior, um transistor NPN pode ser considerado como dois diodos justapostos que compartilham a região do anodo. O terminal ligado a esta região (de material P) chama-se “base”. Os outros dois terminais, ligados às regiões de material N, chamam-se “coletor” e “emissor”.  Na configuração usual, a junção emissor-base funciona com polarização direta enquanto a junção base-coletor funciona com polarização reversa (calma que logo veremos um exemplo esclarecedor).

Nesta configuração o emissor permanece sempre aterrado (ligado à terra). O coletor, por sua vez, será sempre alimentado com tensão positiva. A base funcionará como terminal de controle e pode ou não ser alimentada. Mas, quando o for, será sempre com tensão positiva e muito menor que a aplicada ao coletor. Veja, na figura 2, um diagrama esquemático destas configurações nas quais, na ilustração do lado esquerdo da figura, a base não recebe qualquer tensão (o interruptor que a alimenta está aberto) enquanto que, na do lado direito, com o interruptor fechado, a base é alimentada, porém com uma tensão menor que a aplicada ao coletor devido à presença do resistor R que reduz a tensão.

Figura 2: Transistor NPN: conduzindo e não conduzindo.

No que toca ao fluxo de corrente elétrica, como se comporta a configuração representada na ilustração da esquerda da figura 2? Bem, o emissor está ligado à terra (ou ao pólo negativo da bateria, o que dá no mesmo), e isto repele os elétrons livres do material N, empurrando-os para perto da junção emissor-base. Mas a base não recebe qualquer tensão (o interruptor que a alimenta está aberto) e as lacunas, difusamente espalhadas na região tipo P da base, não se concentram nas proximidades da junção base-emissor para forçar a passagem da corrente. No lado oposto, o coletor está ligado ao terminal positivo da bateria, o que atrai os elétrons, levando-os para longe da junção coletor-base. Portanto, nenhuma corrente flui através do transistor, que funciona como um isolante (ou melhor: como uma “chave”, ou interruptor, aberto).

Agora vejamos o que ocorre quando aplicamos à base uma pequena tensão positiva (pequena porque o resistor R situado entre o pólo positivo da bateria e o interruptor que alimenta a base provoca uma queda de tensão). Agora, o diodo formado pela junção base-emissor está polarizado diretamente. E um diodo assim polarizado conduz corrente. Esta corrente, embora de pequena intensidade (Ib, ou corrente de base), injeta cargas positivas na região de material P da base. Estas cargas positivas se difundem através da base e, devido à pequena espessura do material P que a constitui, logo a saturam, se acumulando nas proximidades da junção base-coletor. Este acúmulo de cargas positivas acaba por atrair os elétrons livres da região de material N do coletor. O resultado disto é que a resistência da junção base-coletor é vencida e estabelece-se uma corrente entre coletor e base, produzindo uma concentração de cargas negativas nesta base, formando um “canal-N” no interior do material tipo P, o que acaba por provocar uma corrente (Ic) de grande intensidade (devido à elevada tensão aplicada ao coletor) que atravessa a base e se propaga para o emissor, atravessando assim todo o transistor, que passa a conduzir (funcionando como um condutor, ou melhor: como uma “chave”, ou interruptor, fechado).

Portanto um transistor NPN como o mostrado na figura 2 atua como um interruptor eletrônico controlado pela base. Se há tensão aplicada à base o transistor conduz. Se não há, este mesmo transistor funciona como um isolante.

O processo de fabricação adotado para os circuitos integrados modernos usa um substrato de cristal de silício puro no qual se acrescentam impurezas para produzir as regiões tipo P e tipo N às quais se conectam contatos elétricos. A superfície deste conjunto é revestida com uma fina camada isolante, geralmente de dióxido de silício. A espessura da camada de silício é da ordem de dezenas de nanômetros. A figura 3 mostra o diagrama esquemático de um transistor NPN fabricado de acordo com este processo.

Figura 3: Transistor NPN – diagrama esquemático.

Na descrição acima o transistor funciona como interruptor eletrônico, ou “chaveador de corrente”, seu uso predominante na eletrônica digital. Mas em muitas aplicações, principalmente analógicas, ele funciona como amplificador de corrente. Isto porque a intensidade da corrente Ic, além de bastante maior, é diretamente proporcional à intensidade da corrente Ib. Portanto, quanto maior a tensão aplicada à base, maior a corrente que atravessa o transistor. Fato do qual nos aproveitaremos adiante para entender o funcionamento das células de memória tipo flash MLC.

Mas, e já que falamos nela, o que tudo isto tem a ver com a memória flash?

Bem, uma célula de memória não volátil (ou seja, um dispositivo capaz de armazenar um bit, ou assumir dois estados mutuamente exclusivos dos quais um pode ser atribuído ao valor “um” e o outro ao valor “zero” e manter estes valores mesmo quando não alimentado eletricamente) tipo flash é muito parecida com um transistor MOSFET. Repare na figura 4.

Figura 4: Célula de memória flash.

Como se vê, a única diferença estrutural entre o transistor MOSFET e a célula de memória flash é a presença, nesta última, de uma segunda base denominada “base flutuante” ou “porta flutuante” (FG, de “floating gate”). É claro que existem outras e importantes diferenças no que toca à estrutura e ao processo de fabricação, mas no que diz respeito ao funcionamento da célula de memória, as características essenciais são as exibidas na figura.

Pois é justamente o acréscimo da base flutuante que permite a um simples transistor, de natureza tipicamente volátil (só funciona se alimentado com energia elétrica) se transformar em uma célula de memória não volátil, adquirindo a propriedade de preservar a informação que armazena mesmo quando não alimentado. Vejamos como isso é possível.

Na célula de memória flash a base convencional – que recebe o nome de “porta de controle” (CG, de “control gate”) – se conecta eletricamente ao exterior do transistor, o que permite que nela seja aplicada a tensão de controle. Já a porta flutuante FG permanece inteiramente imersa na camada de isolante, portanto não está eletricamente conectada a qualquer outro componente interno ou externo. O que traz uma conseqüência mais que desejável: caso se consiga uma forma de carregá-la eletricamente, as cargas elétricas serão ali mantidas por anos a fio, já que não têm por onde escapar da FG.

Vimos que, nos transistores MOSFET, a capacidade de conduzir ou não corrente elétrica entre coletor e emissor depende de haver ou não uma tensão aplicada à base. Mas no caso da célula de memória da figura 4, como controlar esta capacidade de conduzir corrente?

A resposta mais simples e direta é: exatamente como nos transistores, pela presença de uma tensão na porta situada entre os dois terminais.

Mas ocorre que, neste caso particular, esta porta é a FG, completamente isolada dos demais componentes. Como aplicar uma tensão a um componente eletricamente isolado?

A solução é simples: basta alimentar por um curto período a outra porta, a chamada porta de controle CG, com uma elevada tensão elétrica (sempre maior que 5 V, podendo chegar a 12 V). Esta elevada tensão faz com que a propriedade dos meios semicondutores denominada “injeção à quente de portadores” (ver tópico < http://en.wikipedia.org/wiki/Hot_carrier_injection > “Hot carrier injection” na Wikipedia) permita que cargas elétricas ganhem energia cinética suficiente para fazê-las “saltar” através do meio isolante, neste caso a fina película de dióxido de silício situada entre CG e FG. O resultado disso é que FG recebe cargas elétricas positivas.

Este fato traz duas conseqüências. A primeira é que a presença desta carga (ou tensão) elétrica no eletrodo situado entre coletor e emissor (no caso, a base flutuante, ou FG) faz com que o transistor se torne condutor, ou seja, caso se aplique uma tensão ao coletor com o emissor ligado à terra, uma corrente elétrica se estabelecerá entre ambos através do chamado “canal n” induzido pela presença de tensão em FG (exatamente como nos transistores MOSFET). A segunda conseqüência é justamente aquela que transforma este dispositivo em uma célula de memória não volátil: como as cargas migraram para FG, o “canal n” não se desfaz quando a tensão aplicada a CG é removida. Isto porque a formação deste canal não depende da presença de cargas em CG, mas daquelas que “saltaram” para a FG e que de lá não podem escapar sem atuação de um agente externo. Portanto, enquanto permanecer neste estado, o transistor conduzirá corrente sempre que uma tensão for aplicada a seu terminal coletor e seu terminal emissor estiver “aterrado”.

Mas para que o dispositivo efetivamente atue como uma célula de memória não volátil, ele  deve permitir que este estado seja alterado quando desejado. O que de fato pode ser feito aterrando CG e aplicando uma tensão elétrica ao coletor enquanto se mantém aberta a conexão do emissor com a terra. Isto corresponde a aplicar uma diferença de potencial entre FG e CG no sentido oposto à anteriormente aplicada, o que expulsará as cargas elétricas retidas na base flutuante FG devido ao princípio conhecido por “efeito túnel” (“quantum tunneling”), um fenômeno da mecânica quântica que se estabelece em escala nanoscópica e permite que partículas atravessem barreiras de impedância maior que sua energia cinética, violando assim os princípios da mecânica clássica (veja tópico < http://en.wikipedia.org/wiki/Quantum_tunneling > “Quantum tunnelling” da Wikipedia). Isto fará com que a FG perca as cargas elétricas previamente acumuladas, fazendo com que o dispositivo volte a não conduzir corrente entre coletor e emissor mesmo que exista uma diferença de potencial entre eles.

Complicou?

Bem, desta vez sou obrigado a concordar: complicou mesmo. Conceitos de mecânica quântica não são o recheio usual de colunas como esta – mesmo porque meus conhecimentos sobre o tema mal chegam a arranhar sua superfície. Mas podemos simplificar e reduzir significativamente o nível de complexidade fazendo com que, mesmo quem não percebeu patavina (gostou da palavra? existe, e qualquer baiano que se preze a conhece) do que foi acima explicado consiga entender como funciona uma célula de memória flash. Simplifiquemos, pois.

Volte a examinar a Figura 4 e tenha em mente o que aprendemos sobre transistores MOSFET. Repare que ela mostra um componente que consiste essencialmente de quatro elementos: coletor, emissor, base de controle CG e base flutuante FG.

Imagine que não exista qualquer carga elétrica na base flutuante FG. Neste caso, mesmo que liguemos o coletor a uma fonte de tensão e o emissor à terra, não haverá corrente entre coletor e emissor. E se repetirmos a experiência infinitas vezes, infinitas vezes constataremos que, neste estado, o dispositivo não conduz corrente.

Agora imagine que por alguns instantes se aplique uma elevada tensão elétrica à base CG. Esta tensão é tão elevada e a capacidade de isolamento da fina camada de dióxido de silício situada entre base CG e base flutuante FG é tão pequena, que cargas elétricas saltarão de uma para a outra, carregando a FG. A partir de então (lembre do transistor MOSFET!), caso se venha a aplicar uma diferença de potencial elétrico entre coletor e emissor, o dispositivo conduzirá corrente. E, como a base flutuante está eletricamente isolada dos demais componentes, a carga permanecerá cativa em seu interior. Assim sendo, enquanto este estado não se alterar, se repetirmos a experiência infinitas vezes, infinitas vezes constataremos que, neste estado, o dispositivo conduz corrente. E apenas deixará de conduzir, revertendo ao estado anterior, caso venha a se aterrar a base e aplicar uma tensão elétrica no coletor.

Pronto: aí está uma célula de memória não volátil rudimentar. Confira: pode assumir dois estados mutuamente exclusivos (conduzir ou não conduzir corrente entre dois terminais determinados); permite que estes dois estados sejam alterados quando desejado; e mantém o estado inalterado mesmo que não esteja eletricamente alimentada. Para que isto seja mesmo uma célula de memória basta atribuir um destes estados ao valor “zero” e o outro ao valor “um”. Aí está nossa célula de memória flash.

Pois é. Mas como foi mesmo que este papo começou? Ah, se bem me lembro a idéia era “esclarecer um ponto que ficou pendente: as diferenças entre memórias flash de nível simples e múltiplo”. Que, agora, ficou fácil.

A célula de memória flash mostrada na figura 4 é um exemplo típico de uma célula de memória flash de nível simples (SLC ou single-level cell). Ela pode armazenar apenas um bit porque somente pode assumir dois estados, a que podem ser atribuídos os valores “zero” e “um”.

Mas acontece que a tecnologia de fabricação de memórias flash evoluiu tanto e tão rapidamente nos últimos anos que tornou possível controlar a carga transferida para a base flutuante FG. Ou seja: variando a tensão aplicada à base CG, pode-se transferir (e manter) diferentes cargas elétricas na base flutuante FG. E, como vimos ao discutirmos o transistor MOSFET, a intensidade da corrente que transita entre coletor e emissor é proporcional à tensão (ou carga) da base. Então, pode-se aumentar a quantidade de valores que um destes dispositivos pode armazenar fazendo variar o “nível” da carga retida na base flutuante. Com isto teremos um dispositivo de níveis múltiplos de carga. Este dispositivo é conhecido por MLC ou multiple-level cell.

As MLC mais comuns são as que podem manter quatro níveis de carga (de zero a três) e que, portanto, podem armazenar dois bits.

E aqui cabem dois esclarecimentos:

O primeiro: por que dois bits? Simples: porque com dois bits pode-se representar quatro números, de "zero" a "três" (em binário: 00 = zero; 01 = um; 10 = dois; 11 = três). Portanto, conduzindo quatro diferentes intensidades de corrente, o dispositivo pode representar os quatro números que pode ser armazenados em dois bits.

O segundo: embora recebendo o nome de "célula de nível múltiplo", tecnicamente o novo dispositivo não pode ser considerado uma "célula de memória" no sentido estrito da expressão já que, segundo a definição clássica, uma célula de memória só pode assumir dois estados mutuamente exclusivos e portanto só pode armazenar um bit.

Mas não nos deixemos levar por detalhes desta ordem. Embora, no sentido estrito, apenas a SLC possa ser considerada uma "célula de memória", tanto ela quanto a MLC são assim chamadas e nada de errado há nisso, é apenas uma questão de convenção.

Pois é isso. Agora já sabemos como funciona uma célula de memória flash e qual é a diferença entre as de nível simples e múltiplo. Só falta ver como podemos combiná-las com memória DDR para entender como funcionarão os discos de estado sólido da EMC.

Na próxima coluna, naturalmente.

 

B. Piropo