Sítio do Piropo

B. Piropo

< Coluna em Fórum PCs >
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07/11/2011

< As máquinas dominarão o mundo? >


Um aviso à margem do tema: a coluna anterior versou sobre o Office 365, ainda não lançado no Brasil. Enquanto alguns leitores postavam seus comentários, tomei conhecimento que o lançamento oficial será efetuado na próxima terça-feira, dia 8 de novembro de 2011. Como pretendo acompanhar o lançamento, a coluna seguinte voltará ao assunto. Portanto, os que estiverem interessados nas características do novo produto/serviço (uma das formas de comercialização do Office 365 será na modalidade SaaS, de “Software as a Service”, um modelo no qual os arquivos executáveis permanecerão nos servidores da empresa), inclusive os que comentaram a coluna e tiveram a impressão que eu “abandonei o tópico” por preferir acrescentar meus comentários após o lançamento e com quem me desculpo pelo aparente descaso, terão informações adicionais, atualizadas, dentro de uma semana. Agora, aos memes...
Há cerca de três meses publiquei aqui mesmo a coluna < http://blogs.forumpcs.com.br/bpiropo/2011/08/08/afinal-quem-e-o-mais-estupido/ > “Afinal, quem é o mais estúpido?” que tratava de um tema um tanto bizarro: uma pesquisa, atribuída à canadense AptiQuant, ilustrada com gráficos e dados numéricos, dando conta de que os usuários do Internet Explorer apresentavam um quociente intelectual (QI) significativamente menor que o dos usuários dos demais navegadores.
Os resultados da pesquisa foram amplamente divulgados na imprensa e na Internet. Pelo menos até se descobrir que a pesquisa jamais existiu, seus resultados foram forjados e tudo aquilo era obra do desenvolvedor de sítios para a Internet Tarandeep Gill, cuja foto, obtida em sua página do Twitter (@tarangill) aparece na Figura 1.

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Figura 1: Tarandeep Gill

O título da coluna refletia minha dúvida sobre que grupo teria sodo o mais estúpido: os usuários do IE, os que acreditaram no resultado de uma pesquisa inexistente ou os que a divulgaram sem apurar sua veracidade.
Mas porque teria Mr. Gill se dado ao trabalho de forjar tal pesquisa?
Ele declarou que o fez por não aguentar mais as incompatibilidades do Internet Explorer 6 com os modernos padrões de desenvolvimento para a Internet e porque estava cansado de ser obrigado a testar a compatibilidade de cada página por ele desenvolvida com as quatro últimas versões do navegador. E decidiu tomar alguma providência para reduzir o número de usuários do IE. Providência esta que consistiu em divulgar os supostos resultados da pesquisa forjada com o objetivo de criar um meme que, ao se propagar, fizesse com que as pessoas abandonassem o IE para fugirem da pecha de serem estúpidas.
Quase deu certo. Só falhou porque ele não contava com o vulto assumido pela questão, que o obrigou a admitir que a pesquisa havia sido forjada. Pois um meme não se cria com estardalhaço. Ao contrário, ele se dissemina aos poucos, pessoa a pessoa, mente a mente, até adquirir foros de veracidade. E só então seus efeitos se manifestarão.
Mas, afinal, o que é um meme?

Memética
“Meme” é um termo que designa um conceito, ambos forjados por Richard Dawkins, segundo o qual os princípios evolucionários de Darwin podem ser ampliados para o campo das ideias e dos fenômenos culturais. Um meme, no campo das ciências que estudam o comportamento humano, seria o equivalente a um gene no campo da biologia.
Richard Dawkins é um gênio. Sua especialidade é a etologia, o estudo do comportamento individual e social dos animais. Segundo ele são os genes, entidades replicantes cuja finalidade única é se preservar ao longo dos milênios, que comandam o processo evolucionário, sendo os seres vivos não mais que veículos por eles utilizados para garantir sua replicação. É um ferrenho defensor do evolucionismo, defesa que faz com tal empenho e vigor em seus livros (dez, até o momento, o mais recente, < http://en.wikipedia.org/wiki/The_Magic_of_Reality:_How_We_Know_What%27s_Really_True > “The Magic of Reality: How We Know What's Really True” publicado há pouco mais de um mês) que conquistou um exército de contestadores criacionistas. O que fez dele um ferino < http://en.wikipedia.org/wiki/Richard_Dawkins#Criticism_of_creationism > crítico do criacionismo.
Richard Dawkins é uma personalidade notável e vale a pena ler seus escritos ainda que não se concorde com suas ideias. Isto porque ele as expõe com tal clareza que faz com que os temas mais especializados se tornem inteligíveis mesmo para quem é totalmente leigo no assunto. E o faz sem fugir do rigor científico pois “parte do princípio que o leigo não tem conhecimento especializado, mas não que ele é estúpido”. O que o levou a ocupar a cadeira de “Professor para o entendimento público da ciência” na Universidade de Oxford de 1995 a 2008.
Mas voltemos aos memes, que geraram um ramo do conhecimento destinado a estudá-los: < http://en.wikipedia.org/wiki/Memetics > a Memética.

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Figura 2: The Selfish Gene

O termo “meme” foi mencionado pela primeira vez no livro “The Selfish Gene”, de Dawkins, cuja primeira edição veio à luz 1976, a segunda em 1989 e, tendo se tornado um clássico, teve em 2005 uma nova edição, comentada, comemorativa do trigésimo aniversário da primeira, cuja capa aparece na Figura acima. Há uma tradução para o português, intitulada “O Gene Egoista”, publicada pela Cia das Letras e que segundo pude apurar corresponde à edição original. Mas, a quem tem algum conhecimento do idioma inglês, recomendo veementemente a edição comemorativa e comentada. Todo um capítulo, o décimo primeiro, é dedicado aos memes.
Para cunhar o conceito Dawkins se reporta a uma das mais respeitáveis teorias sobre a formação da vida, a da “sopa primordial”, onde os genes, moléculas de DNA, se formaram e se converteram em unidades replicantes. Segundo Dawkins, estas unidades deram origem à forma atual de todas as espécies vivas através de um processo evolutivo baseado em “estratégias evolucionariamente estáveis”.
Pois bem: ainda segundo Dawkins este processo está se repetindo, agora no campo das ideias. Diz ele, textualmente (Capítulo 11, “The Selfish Gene”): “Acredito que um novo tipo de replicante emergiu recentemente neste mesmo planeta... A nova sopa é a sopa da cultura humana. Nós precisamos de um nome para o novo replicante, um nome que transmita a ideia de unidade de transmissão cultural, ou unidade de imitação. Mimeme deriva de uma raiz grega aceitável... Eu abreviei Mimeme para Meme... Assim como genes se propagam no ‘pool’ de genes saltando de corpo para corpo via esperma ou ovos, memes se propagam no ‘pool’ de memes saltando de cérebro em cérebro através de um processo... de imitação”.
Em resumo: um meme é uma ideia que “pega” e se propaga por si mesma, sem que se faça qualquer esforço consciente neste sentido. Como certas músicas que “não saem da cabeça”, frases de efeito, bordões de personagens da televisão, modismos, coisas que de repente “todo o mundo faz igual” sem se dar conta.
Pois era isto que Mr. Gill pretendia. Se a repercussão de sua “pesquisa” não fosse tão intensa a ponto de obrigá-lo a desmenti-la, talvez a noção da presumida “estupidez” dos usuários do IE se transformasse em um meme e se propagasse lenta, mas inexoravelmente, até um ponto em que passasse a ser considerada verdadeira independentemente de comprovação, fazendo com que eles migrassem para outro programa navegador.

A antevisão de Dawkins sobre vírus
O interessante em tudo isto – e que me levou a abordar o assunto aqui – é que o próprio Dawkins, cuja foto obtida na Wikipedia aparece abaixo, percebeu uma forte analogia entre os memes e os vírus de computador. Segundo ele os vírus são uma forma de memes. E deixou isto claro não apenas na edição original do “The Selfish Gene” como também em um comentário na segunda edição.

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Figura 3: Richard Dawkins

Vamos a eles. Porém sempre tendo em mente que a primeira edição foi escrita em 1976, pelo menos um ano antes do lançamento dos primeiros computadores pessoais “de oito bits” e cinco anos antes do PC da IBM. E considerando que o comentário seguinte foi acrescentado à segunda edição, em 1989, antes da disseminação das interfaces gráficas, muito antes que a Internet começasse a se popularizar e em uma época em que o intercâmbio de informações entre computadores se dava através da troca de disquetes.
Então vamos aos textos de Dawkins em uma tradução mais ou menos livre feita por este escrevinhador que vos fala.
Citação da primeira edição de “The Selfish Gene” (1976):
“Todo usuário de computador sabe como o tempo de utilização da máquina e espaço de armazenamento na memória são preciosos... Os computadores em que os memes vivem são os cérebros humanos”.
Comentário de Dawkins sobre o trecho acima, inserido na segunda edição (1989):
“Era obviamente previsível que computadores eletrônicos fabricados pelo homem também pudessem eventualmente abrigar padrões autorreplicastes de informação – memes. Computadores estão cada vez mais conectados em intrincadas redes de informações compartilhadas. Muitos deles estão literalmente ligados entre si trocando mensagens de correio eletrônico. Outros compartilham informações quando seus usuários trocam disquetes. Este é um ambiente perfeito para programas autorreplicastes prosperarem e se disseminarem. Quando escrevi a primeira edição deste livro eu fui suficientemente ingênuo para supor que um indesejável meme de computador fosse gerado por um erro espontâneo no processo de cópia de um programa legítimo e imaginei que isto fosse um evento improvável. Ai de mim, aqueles foram tempos de inocência. Epidemias de “vírus” e “vermes” deliberadamente gerados por programadores mal intencionados são hoje riscos comuns para os usuários de computadores em todo o mundo. Que eu saiba, meu próprio disco rígido foi infectado em duas distintas epidemias de vírus durante o ano passado e esta é uma experiência bastante comum entre os usuários habituais de computadores. Eu não citarei os nomes de vírus em particular por receio de propiciar qualquer pequena e sórdida satisfação a seus pequenos e sórdidos perpetradores. “Sórdido” porque seu comportamento me parece moralmente indistinguível daquele de um técnico de laboratório de microbiologia que deliberadamente contamina a água potável e dissemina uma epidemia apenas para rir às escondidas das pessoas que adoeceram. E “pequeno” porque estes indivíduos são mentalmente pequenos. Nenhuma engenhosidade é necessária para criar um vírus de computador. Qualquer programador medíocre pode fazê-lo e hoje em dia programadores medíocres existem a dar com o pau. Eu mesmo sou um deles. E nem mesmo me darei ao trabalho de explicar como funcionam os vírus. É demasiadamente óbvio.
“O que é mais difícil de descobrir é como combatê-los. Infelizmente alguns programadores de alto gabarito são obrigados a desperdiçar seu tempo valioso desenvolvendo programas para detectar vírus, imunizar computadores e assim por diante (a analogia com vacinas no campo da medicina, por falar nisso, é espantosamente estreita, até o ponto da injeção de uma ‘cepa atenuada’ do vírus). O perigo é que uma corrida armamentista venha a se desenvolver, com cada avanço na prevenção dos vírus se contrapondo a iguais avanços nos novos programas de vírus. Até o momento a maior parte dos programas antivírus são criados por programadores altruístas e oferecidos como um serviço gratuito. Mas eu antevejo o surgimento de uma nova profissão – subdividida em lucrativas especializações, como qualquer outra profissão – de ‘médicos de software’ que atenderiam com suas maletas pretas cheias de disquetes para diagnosticar e curar viroses. Eu usei o termo ‘médicos’, mas os médicos verdadeiros se dedicam a resolver problemas naturais que não foram concebidos deliberadamente pela maldade humana. Meus médicos de software, por outro lado, como os advogados, estarão resolvendo problemas criados pelo homem e que, para começar, jamais deveriam ter existido. “Enquanto os criadores de vírus não tiverem qualquer motivação discernível, eles presumivelmente se sentem vagamente anarquistas. A eles eu apelo: vocês realmente desejam criar as bases de uma nova profissão de aproveitadores? Se não, parem de brincar com memes tolos e façam melhor uso de seus modestos talentos de programadores”.

Um pouco de ficção científica
Eu comecei a “mexer com computador” na segunda metade dos anos oitenta do século passado. E ouvi falar de vírus pela primeira vez quase no final daquela década. Redes eram raras e exclusivamente corporativas, a Internet estava em seu nascedouro, computadores domésticos não eram comuns, a maioria dos que existiam – como o meu – sequer tinham discos rígidos e a única forma de vírus se propagarem era através de disquetes trocados por usuários. Portanto o que mais me chamou a atenção quando li as observações de Dawkins foi o fato de ele haver pressentido a violenta disseminação de epidemias de vírus ainda em meados da década de setenta do século passado.
Mas o que realmente importa é o conteúdo de seus comentários. A começar pelo apelo quase pueril aos criadores de vírus para que fizessem “melhor uso de seus modestos talentos”. Ora, de Dawkins pode se dizer tudo, menos que seja ingênuo. Seu apelo, partindo de um cientista, emérito professor de Oxford, reflete a postura vigente na época entre os acadêmicos. E talvez esclareça aos que tanto lamentam a falta de segurança da Internet, que acabou se tornando o principal meio de disseminação de vírus, as razões pelas quais a grande rede foi implantada assim, tão frágil e sujeita a ataques. Pois no meio acadêmico, onde ela criou suas bases, poucos imaginavam que fosse usada da forma maliciosa que é hoje.

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Figura 4: Máquinas dominando o mundo

Também chama a atenção a opinião que Dawkins expressa sobre as mentes doentias dos que criam e disseminam vírus. Os adjetivos “sórdido” e “pequeno” raramente foram tão bem empregados. A comparação entre as sórdidas atitudes do imbecil que desenvolve um vírus apenas pelo prazer de prejudicar centenas de milhares de pessoas que ele sequer conhece e do técnico de laboratório que contamina a água potável para se divertir com a disseminação de uma moléstia infecciosa é perfeita, como perfeita é a classificação de ambos como “mentalmente pequenos”.
Mas o que mais assusta é a analogia, percebida pelo próprio Dawkins, entre os vírus de computador e os memes e entre estes e os genes, entidades replicantes que, segundo Dawkins, governam o comportamento de seus veículos, os seres vivos.
Combinar estes conceitos com os das < http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1quina_autorreplicadora > máquinas autorreplicadoras e < http://pt.wikipedia.org/wiki/Aut%C3%B3mato_celular > Autômatos Celulares de Von Neumann, assim como dos < http://pt.wikipedia.org/wiki/Montador_molecular > Nanomontadores, é de dar calafrios. Máquinas capazes de fabricar outras máquinas sem interferência humana, orientadas por vírus mal intencionados com os quais foram contaminadas e fora do controle de humanos são um pesadelo já exaustivamente explorado pelos autores de ficção científica e cuja existência a combinação dos conceitos de genes, vírus e memes, todos eles entidades autorreplicastes, torna assustadoramente possíveis.
Um prato cheio para os amantes da ficção científica que se assombram com a ideia de “máquinas que dominarão o mundo” como as da foto de divulgação exibida acima.
Eu, velho assumido e resignado, não tenho muito com o que me preocupar.
Mas vocês, que são jovens, que se cuidem...

B. Piropo