Sítio do Piropo

B. Piropo

< O Globo >
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15/09/2003

< A facínora >


Provavelmente você já deve ter lido em algum jornal ou visto na televisão que segunda-feira passada a poderosa RIAA (Recording Industry Association of América), que congrega as arquimilionárias gravadoras americanas, moveu ações judiciais contra 261 cidadãos sob a acusação de pirataria apenas por usarem seus computadores para compartilhar músicas cujos direitos autorais pertencem a suas associadas. E talvez já saiba que uma das acusadas é Brianna LaHara, uma menina de doze anos que não fazia a menor idéia de que estava violando qualquer lei e outro é Durwood Pickle, um vetusto septuagenário que jamais usou seu computador para esse fim e presume que os autores das alegadas ações criminosas sejam seus netos pré-adolescentes que de quando em vez o visitam. E que tanto uma quanto o outro tomaram conhecimento do processo através da imprensa e não de qualquer notificação judicial, pois a RIAA se apressou a divulgar sua façanha tão logo a perpetrou, deixando claro que deseja dar a maior publicidade possível ao fato. Tipo assim fazer uma velhinha indefesa se estabacar no chão com uma rasteira e sair contando pra todo mundo como se fosse uma proeza.
As ações foram movidas com base na lei de direitos autorais americana que permite ao juiz fixar multas entre US$ 750 e US$ 150.000 por obra (ou seja, por música transferida), o que eleva o total teórico da multa à casa dos milhões de dólares por réu em caso de condenação. Segundo o presidente da RIAA, Carey Sherman, em entrevista a Liane Cassavoy em <www.pcworld.com/news/article/0,aid,112364,00.asp>, essa é apenas a primeira leva de processos, dirigida àqueles que transferiram mais de mil músicas usando o Kazaa, iMesh, Gnutella ou Blubster. Eles foram escolhidos em um grupo de mil e quinhentos contra os quais a RIAA já dispõe de intimações.
O intuito da RIAA com essa medida é claramente assustar os usuários (mais propriamente, seus pais, já que a grande maioria é composta de adolescentes), pois estima-se que somente nos EUA existam mais de sessenta milhões de pessoas compartilhando arquivos musicais e haja advogado para processá-los todos. A estratégia de voltar suas baterias contra os cidadãos comuns foi inaugurada pela RIAA há três meses, quando levou aos tribunais quatro estudantes que usavam as redes de suas universidades para compartilhar arquivos musicais (veja artigo “Roubando bala da boca de criança”, publicado em junho passado e disponível na seção Escritos / Artigos no Globo de meu sítio, em <www.bpiropo.com.br>). Esperava-se que alguma coisa acontecesse depois daquilo. Mas a enxurrada de processos contra centenas de cidadãos era algo totalmente inesperado.
Nessa altura dos acontecimentos talvez você esteja se perguntando como, em um país como os EUA onde o esquema legal de proteção à privacidade é tão poderoso e os provedores fazem o que podem para garantir o anonimato de seus clientes, a RIAA conseguiu identificar usuários de um sistema tão pulverizado como o de compartilhamento de arquivos musicais. Pois a resposta se resume em quatro letras: DMCA, de Digital Millenium Copyright Act. Uma lei sobre direitos autorais aprovada pelo Congresso americano em 1998 de uma severidade jamais vista (publiquei um artigo sobre ela em dezembro de 2002 que permanece disponível em meu sítio). Nos termos da DCMA, para obter uma intimação obrigando um provedor Internet a fornecer os dados pessoais de seus clientes acusados de violar a legislação de direitos autorais, a RIAA nem ao menos precisa da intervenção de um juiz. Qualquer pessoa ou organização que detenha direitos autorais sobre qualquer obra pode apoiar-se na lei para solicitar a um simples oficial de cartório que expeça uma intimação, uma liberdade de ação que nem mesmo os promotores de justiça americanos dispõem contra criminosos comuns (que só podem ser intimados por um juiz togado).
Enquanto processa cidadãos, a RIAA oferece um programa de anistia (segundo eles, “nossa versão de um ramo de oliveira”; veja em <www.foxnews.com/story/0,2933,96728,00.html>). Para participar do programa, qualquer indivíduo envolvido com compartilhamento de arquivos musicais pode procurar a RIAA e se comprometer, sob juramento, a destruir todos os arquivos musicais protegidos por direitos autorais em qualquer formato que estejam gravados em suas máquinas (inclusive CDs) e assumir o compromisso de nunca mais transferir esse tipo de arquivo nem permitir que qualquer outra pessoa o faça para seus computadores. A RIAA promete a quem aderir que não os processará pelas atividades passadas. Por outro lado, a EFF (Electronic Frontier Foundation ), uma entidade que defende as liberdades civis, adverte que esse oferecimento deve ser encarado com a devida cautela, já que implica a admissão de haver cometido atividades ilegais e, mesmo sob a oferta de anistia, quem o faz estará sujeito a processo.
Em suma: coisa está preta. É bom tomar cuidado. Porque, depois, não adianta alegar desconhecimento da lei. Veja o caso da perigosa delinqüente Brianna LaHara, que corre o risco de ser condenada a pagar alguns milhões de dólares em multa. Mora em um conjunto habitacional de baixa renda em Nova Iorque com sua mãe, Sylvia Torres, e seu irmão de nove anos. Quando soube, pela imprensa, que estava sendo processada, comentou que não tinha idéia de estar praticando qualquer ilegalidade pois imaginou que a mensalidade que a mãe paga ao provedor Internet cobrisse todos os serviços oferecidos. E quando perguntada como se sentia, a celerada facínora, do alto de seus doze anos, retrucou: “Estou apavorada. Meu estômago está embrulhado”.
Parece, enfim, que desta vez a RIAA acertou. Essa nefasta criatura dificilmente voltará a trilhar o caminho do crime. Pobre criança.
Aliás, aquele velhote e seus netinhos que se cuidem. Periga serem enquadrados por formação de quadrilha.

B. Piropo