Sítio do Piropo

B. Piropo

< O Globo >
Volte
26/05/2003

< Como impedir o acesso à literatura >


A difusão do computador pessoal mudou aspectos de nossa vida que jamais poderíamos sonhar. Mas se há um grupo de indivíduos para os quais o computador pessoal fez uma diferença vital, é o de pessoas portadoras de deficiências. Para eles o computador é o passaporte para a inserção na força de trabalho, a ferramenta que lhes permitirá romper barreiras, integrar-se à sociedade produtiva e conquistar os direitos da cidadania plena. Sentado em frente a um micro o portador de deficiência auditiva ou visual enfrenta ombro a ombro, e muitas vezes com vantagens, a concorrência de qualquer profissional que se crê “sadio”. Eu já falei disso aqui (a coluna “A última de ceguinho”, publicada em outubro de 97, continua disponível na seção Escritos de meu sítio, em <www.bpiropo.com.br>) e voltarei a falar ainda muitas vezes. A importância do tema justifica.
A DMCA, ou “Digital Millenium Copyright Act”, é uma draconiana lei aprovada pelo congresso americano e sancionada pelo presidente Clinton em 1998 que visa proteger a propriedade intelectual. Em seu artigo 1201 ela afirma que “ninguém deve fabricar, importar, oferecer ao público, prover ou, de qualquer outra forma, dar acesso a qualquer tecnologia, produto, serviço, dispositivo, componente ou peça concebida com o principal propósito de burlar uma medida tecnológica que efetivamente controle o acesso a uma obra protegida por esta lei”. Isso quer dizer que desenvolver ou distribuir programas que “destravam” a proteção de livros eletrônicos é crime. Eu falei sobre isso dezembro último, no artigo “O primeiro teste da DMCA”, também disponível na mesma seção de meu sítio (para quem consultar o artigo, escrito antes do desfecho do julgamento: a ElcomSoft foi absolvida; detalhes em
<www.pcworld.com/news/article/0,aid,108040,00.asp>).
Achou que os dois parágrafos que abrem esse artigo nada têm a ver um com o outro? Pois se engana. O artigo de Elsa Wenzel intitulado “Has Copyright Law Met Its Match?” na PCWorld.Com (em
<www.pcworld.com/news/article/0,aid,110783,pg,1,00.asp>)
aborda um efeito perverso (em ambos os sentidos) da DMCA: a impossibilidade de usar programas sintetizadores de voz, como os excelentes DOSVox e WinVox, nacionais e gratuitos, (veja detalhes em
<http://intervox.nce.ufrj.br/dosvox/>)
ou os Text-to-Speech e ViaVoice, internacionais, para permitir que deficientes visuais tenham acesso aos livros eletrônicos, ou “e-books”.
Resumindo a questão e poupando o leitor de desagradáveis detalhes técnicos: há, hoje em dia, no mercado americano, cerca de cinqüenta mil livros eletrônicos disponíveis, alguns gratuitos, a maioria não. São obras de todos os tipos e sabores. Podem ser comprados com cartão de crédito. Os preços situam-se em torno de US$10, mas há livros abaixo dos US$ 3. Para lê-los, basta acessar um dos sítios especializados (experimente <www.ebooks.com/>), comprar, baixar e carregar o livro em um programa “leitor” adrede instalado na máquina (como o Adobe Ebook Reader e o Microsoft Reader, para micros de mesa ou portáteis; há também modelos para micros de mão, como o Palm). A leitura é feita na tela.
O problema é que, para evitar que se compre um livro e distribua cópias para os amigos, os arquivos são protegidos. Exatamente o tipo de proteção a que se refere o indigitado Artigo 1201 do DMCA. E uma proteção que não se limita a impedir a cópia do arquivo, mas também de trechos dele, para evitar que o livro seja reproduzido na base do “copiar e colar”. E é esse o fulcro da questão: ao bloquear a reprodução por outros meios, a proteção impede que os programas sintetizadores de voz “leiam” os livros em voz alta. O que é lamentável, já que veda aos deficientes visuais o acesso a um universo literário até agora impensável.
O esquema de proteção não é difícil de ser burlado. Do ponto de vista técnico, seria uma brincadeira de criança. Mas do ponto de vista legal a coisa muda. De acordo com os draconianos termos da DMCA, quem “quebrar” o código de proteção de um livro eletrônico, digamos, para permitir que um amigo portador de deficiência visual tenha acesso a ele, está sujeito a uma multa de US$ 2.500. E se reincidir, a multa aumentará dez vezes. Isso caso prove que a violação à DMCA não visou lucro financeiro. Do contrário a pena pode chegar a dez anos de cadeia e multa de um milhão de dólares (como você vê, o termo “draconiano” aplicado à DMCA não é exagerado).
O problema está criado. Organizações defensoras dos direitos civis, como a IP Justice (<www.ipjustice.org/>) chiaram. Grupos de defesa dos deficientes visuais, como a American Foundation for the Blind (<http://www.afb.org/>) estrilaram. E instituições especializadas em converter textos escritos em “livros sonoros”, como a Recording for the Blind & Dyslexic (<http://www.rfbd.org/>) foram ao desespero. A favor, que eu saiba, apenas a indústria do entretenimento com sua proverbial voracidade, que acha que o material disponível gratuitamente é suficiente para atender as necessidades dos deficientes visuais. E é absolutamente contrária a qualquer alteração da DMCA.
Note que o que se deseja não é desbloquear a proteção, apenas permitir que os livros eletrônicos, comprados e pagos pelos portadores de deficiência visual, sejam “lidos” pelos programas sintetizadores de voz. É a isso que a Association of American Publishers se opõe. Atitude equivalente a surrupiar o dinheiro que os outros depositaram no chapéu do ceguinho...

B. Piropo