Sítio do Piropo

B. Piropo

< O Globo >
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19/07/2004

< Piratas de filmes >


Se você está interessado na história de famosos filibusteiros como Capitão Gancho, Francis Drake e Jean Lafitte, cuja vida e obra inspiraram movimentadas produções cinematográficas, sugiro uma volta lá pelo Segundo Caderno. Aqui, “piratas de filme” são aqueles que transferem ilegalmente cópias de filmes através da Internet.
Isto posto, vamos aos fatos. A OTX (Online Testing Exchange, em <otx5.otxresearch.com/>) é uma empresa da Califórnia que se dedica a uma atividade bastante criativa: conduzir pesquisas de mercado através da Internet. Apesar de nova (afinal, não há empresas velhas na Internet), já é bem conhecida no segmento de pesquisas de mercado ligadas à indústria do entretenimento. Por isso foi contratada pela MPAA (Motion Picture Association of América, em <www.mpaa.org/>) para efetuar uma pesquisa sobre pirataria de filmes via Internet, uma prática que segundo a própria MPAA causa perdas anuais estimadas em três bilhões de dólares a seus associados e que a levou a implementar um programa internacional anti-pirataria (veja detalhes em <www.mpaa.org/anti-piracy/>). A pesquisa se insere neste programa e pode ser encontrada integralmente (em inglês) em <www.mpaa.org/MPAAPress/2004/2004_07_08.pdf>. Acho que vale a pena examina-la e, sobretudo, fazer uma análise crítica de seus resultados.
A OTX selecionou uma amostra na qual 80% dos usuários têm acesso à Internet rápida (“banda larga”) afirmando que o fez porque “eles representam a próxima geração de usuários da Internet” (e não porque a pesquisa foi encomendada pela MPAA, interessada em demonstrar que a porcentagem de piratas entre os usuários é elevada). Isso, a meu ver, distorceu os resultados, tendendo a elevar os índices de pirataria. E a razão é simples: trata-se de pirataria de filmes, arquivos da ordem de Gigabytes cuja transferência demora algumas horas mesmo nas conexões de Internet rápida. Portanto, a probabilidade de encontrar uma elevada porcentagem de piratas de filmes em uma amostra onde prepondera o número de usuários de Internet rápida é significativamente maior que em outra cuja proporção entre usuários de Internet rápida e linha discada represente a realidade do mercado. Porém, dados os devidos descontos, os resultados da pesquisa não deixam de ser interessantes. Além do que não se pode negar que o número de usuários de Internet rápida vem crescendo significativamente e deve-se esperar que em um futuro não muito remoto eles atinjam a casa dos 80%.
A pesquisa abrangeu oito países (Alemanha, Austrália, Coréia, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido). Os participantes foram selecionados entre “freqüentadores ativos de cinemas”, uma decisão que também tende a aumentar os índices de pirataria (afinal, só quem é chegado a um bom filme se dá ao trabalho de transferir um arquivo enorme pela Internet). Recrutou-se inicialmente 400 participantes por país e esse total foi aumentado até que a amostra incluísse pelo menos cem piratas por país, o que elevou o total de participantes para mais de 3.600 usuários distribuídos igualmente em quatro faixas de idade: 13 a 17 anos, 18 a 24, 25 a 34 e 35 a 54 anos.
O resultado evidenciou quê, no total da amostra, quase um em cada quatro usuários (24%) já “baixaram” um filme pela Internet. Mas há aí uma outra distorção. Porque a média inclui os coreanos e ao que parece a Coréia é o paraíso da pirataria cinematográfica: 58% deles (quase dois em cada três) são dados a esse feio vício. Se retirarmos os bucaneiros orientais, a média das porcentagens dos demais países cai para 19%, menos de um em cada cinco usuários. Os campeões em bom comportamento foram os japoneses, com meros 10% de piratas, um em cada dez (e quem conhece o Japão sabe bem porque).
Dando um passo adiante, os pesquisadores indagaram aos piratas se pretendiam continuar exercitando sua prática espúria e aos não piratas se tinham intenção de aderir a ela. Curiosamente, apenas 56% dos piratas responderam positivamente (o que significa que 44% estão decididos a abandonar a vida ilícita) e não mais que 17% dos não piratas informaram que planejavam tornar-se adeptos da pirataria. Embora a MPAA faça alarde desses números como se eles comprovassem que a pirataria se alastra (a pesquisa menciona textualmente que “o mais perturbador é que quase dois entre cada dez não piratas provavelmente passarão a sê-lo no futuro”), uma análise atenta mostra que eles indicam justamente o oposto. E a razão é simples: se a porcentagem dos piratas que pretendem se regenerar é maior que a dos não piratas que almejam bandalhar, o número dos primeiros diminuirá mais depressa do que crescerá o dos últimos, o que fará com que cada vez haja menos corsários singrando as águas bravias da Internet.
A pergunta se “a freqüência de ir ao cinema diminuiu após tornarem-se piratas” recebeu resposta positiva de “grande porcentagem”. Adivinhem em que país essa tendência foi maior? Ganha uma visita grátis ao meu sítio, em <www.bpiropo.com.br>, quem respondeu que foi a Coréia, onde quase um entre três piratas vão menos ao cinema. E mais não diz a pesquisa.
Mas o que ela não diz pode-se deduzir. Senão vejamos: se a maior queda de freqüência foi menor que os 33% da Coréia, a “grande porcentagem” a que se refere (mas não explicita) a pesquisa é relativamente pequena. E mesmo na Coréia, o paraíso dos pichelingues (corra ao dicionário, eu espero), mais de 66% deles ou mantiveram estável sua freqüência aos cinemas ou a aumentaram. E o aumento não é improvável, já que a pesquisa foi realizada exclusivamente entre “freqüentadores ativos de cinema” e um cinéfilo que “baixou” um bom filme pela Internet e o assistiu na telinha de seu micro muito provavelmente se sentirá compelido a vê-lo na tela grande, o que talvez não fizesse não fora a prévia no micro. Ou seja: uma interpretação crítica dos dados pode revelar que a medonha prática da pirataria cinematográfica talvez esteja aumentando o número de espectadores em vez de reduzi-lo. E, por favor, não me venham argumentar que estou advogando a adesão à pirataria. Estou apenas mostrando que os mesmos números podem ser interpretados de uma forma ou de outra segundo os interesses de quem os interpreta.
E quanto à compra de filmes em DVD ou vídeo? Bem, nesse caso 26% dos entrevistados afirmaram que estão comprando menos. A campeã é, novamente, a Coréia, com 52%, enquanto os mais bem comportados são ainda os japoneses. E aí não há muito o que argüir. Quem já “baixou” seu filme pela internet dificilmente se sentiria tentado a comprar uma cópia legal, mesmo sabendo-a de melhor qualidade.
Como descobriram que poderiam transferir filmes ilegalmente pela Internet? A maioria respondeu que foi através da clássica (e poderosa) comunicação boca-a-boca. Mas uma quantidade respeitável afirmou que soube pela própria Internet ou simplesmente porque estenderam aos filmes o antigo hábito de piratear músicas.
A atividade sabidamente ilegal por acaso estaria ferindo as suscetibilidades dos piratas? A pesquisa demonstrou que sim mas, curiosamente, depende da ocasião. Apenas 21%, pouco mais de um em cada cinco usuários, afirmou que achava aceitável a prática de “baixar” um filme antes do lançamento nos cinemas. Mas uma boa porcentagem perde seus escrúpulos depois que o filme “passa” nos cinemas mas ainda não foi gravado em DVD: metade acha quê, nessas circunstâncias, a cópia é aceitável. Depois do lançamento em DVD então, vira festa. A pesquisa não indica a porcentagem, mas afirma que nesse caso “a vasta maioria não faz qualquer objeção” à transferência dos filmes. Uma curiosa inversão de opinião, já que a pirataria é igualmente ilegal antes ou depois do lançamento.
Perguntados sobre a razão que os induzia à funesta prática da rapinagem cinematográfica, a resposta campeã foi “porque é de graça”, o que não creio que tenha surpreendido os pesquisadores. Mas será que também não se surpreenderam com o elevado índice da resposta “porque os filmes legais são muito caros”? Eu não me surpreenderia.
E que razões impediriam essa mesma prática? Bem, neste caso a resposta foi radicalmente diferente entre os piratas e os não piratas. Os primeiros afirmaram que só não “baixam” mais filmes porque a transferência é demorada (daí a preocupação da MPAA com a popularização da Internet rápida) e a qualidade do filme assim obtido é baixa. Já a grande maioria dos não piratas afirmaram que a principal razão que os impede de obter filmes na Internet é o simples fato de ser ilegal. E mais: que eles o fariam caso fosse legal – com o quê, aliás, concordam os piratas quê, segundo a pesquisa, “estão interessados em encontrar meios de obter filmes sem transgredir a lei” . Poucos citaram a má qualidade do filme e a demora na transferência como inconvenientes e, quando o fizeram, consideraram um problema de ordem secundária.
Talvez nesse último parágrafo esteja o ponto crucial da pesquisa: o interesse comum entre piratas e não piratas em obter filmes na Internet usando meios legais. Um ponto quê, se a indústria do cinema for mais inteligente que a da música (“menos estúpida” caberia melhor), pode abrir caminho para uma solução satisfatória para todos, MPAA e usuários. Basta conceber um vasto sistema de distribuição de filmes pela Internet que seja legal, eficiente, flexível e, sobretudo, barato (o que não é impossível, já que os custos da transferência cabem sempre ao usuário, seja pagando tempo de conexão nas ligações “dial up”, seja pagando por megabytes transferidos nas conexões de Internet rápida que usam esse tipo de tarifação).
Um sistema desses está fadado a dar certo. E a hora é essa, enquanto eles têm tudo a seu favor. Embora aleguem prejuízos bilionários com a pirataria de filmes, os ganhos da indústria são arqui-bilionários e eles dispõem de capital para conceber e implementar um sistema modelar. Hoje em dia, como bem demonstra a pesquisa, a pirataria de filmes ainda é uma prática incipiente devido sobretudo a ainda pequena fatia do mercado que dispõe de conexão em banda larga. Se aproveitarem a ocasião poderão formar uma mentalidade segundo a qual vale mais a pena pagar uma quantia razoável por um bom filme que ferir a consciência praticando um ato sabidamente ilegal. E, se conseguirem isso, verão suas vendas explodirem tão logo a Internet rápida se dissemine como se espera.
Enfim: estão com a faca e o queijo na mão.
Para espantar os ratos, basta cortá-lo...

B. Piropo