Sítio do Piropo

B. Piropo

< Trilha Zero >
Volte de onde veio
24/09/2001

< Carnivore >


Foi em um artigo de Cora Rónai no Globo de domingo 16/09 que encontrei a primeira menção ao uso do Carnivore após o atentado terrorista de NY. Dois dias depois, na sempre excelente coluna “A Nova Economia”, Nelson Vasconcelos voltou ao tema. O assunto se discute na Internet, inclusive nos sítios da editora Ziff Davis e da revista Wired. Mas o que é o Carnivore e por que se fala tanto dele?

Carnivore é um programa do FBI para vigiar correio eletrônico (para saber mais, consulte “The Carnivore FAQ”, em <www.robertgraham.com/pubs/carnivore-faq.html>). É a versão digital do “grampo” telefônico. Em princípio é perfeitamente legal: só pode ser empregado mediante ordem judicial exarada após um procedimento detalhado e rigoroso. Deve ser usado sob estrita supervisão da autoridade judicial que emitiu a ordem e exclusivamente para examinar a correspondência de pessoa sobre a qual pesa justificada suspeição de exercer atividade criminosa. Exige a instalação no provedor de um computador para coletar os dados, ligado por linha telefônica a um segundo computador destinado à análise desses dados. O primeiro computador, sem teclado ou monitor, somente pode ser controlado através do segundo e não pode introduzir dados no provedor (portanto, a correspondência não pode ser modificada, apenas inspecionada) nem sofrer qualquer acesso exceto pelo segundo (impedindo que hackers tenham acesso aos dados). Em tese o Carnivore é legal, seguro e protegido contra uso indevido. O problema está justamente no “em tese”.

Quando o FBI propôs o uso do programa, levantaram-se questões sobre o perigo que ele representava para a privacidade do cidadão comum. Para dirimir dúvidas o Departamento de Justiça dos EUA solicitou ao IIT Research Institute a análise do Carnivore (veja relatório em <www.usdoj.gov/jmd/publications/carnivore_draft_1.pdf>). O resultado é inquietante. A lista de conclusões é longa, mas resumidamente afirma que o programa cumpre com o exigido pela legislação, desde que usado apropriadamente. No entanto, se configurado incorretamente, “pode gravar todo o tráfego que monitora”. O relatório afirma ainda que Carnivore apresenta limitações no que toca à proteção das informações coletadas e padece de diversas deficiências técnicas. Em suma: é um perigo. Felizmente, o perigo é limitado: segundo o relatório, devido a suas próprias deficiências, o programa está longe de ser capaz de “espionar todo o mundo que tenha uma conta de correio eletrônico”. Tendo sido concebido para espionagem individual, falta-lhe recursos para fazer aquilo que os defensores da privacidade tememos: “filtrar” todo o fluxo de mensagens de um provedor em busca de termos suspeitos como “dinamite”, “explodir” e coisas que tais. Em suma: Carnivore é uma dupla porcaria: não protege o cidadão inocente mas não chega a ser uma ameaça para a população em geral (incidentalmente: visando torná-lo mais palatável o FBI fez algumas alterações cosméticas no Carnivore e mudou seu nome para DCS1000).

Tendo em vista suas limitações, o que me preocupa não é o Carnivore, mas o afrouxamento das exigências para seu uso concedido pelo “Combating Terrorism Act of 2001”, lei aprovada pelo Senado americano apenas dois dias depois do atentado à NY, ainda sob efeito da comoção que tomou o país (veja repercussões na Wired, em <www.wired.com/news/politics/0,1283,46852,00.html/>, no sítio da organização “Stop Carnivore Now” em <www.stopcarnivore.org/> e, sobretudo, no excelente artigo de Robert Vamosi, em <www.zdnet.com/anchordesk/stories/story/0,10738,2813084,00.html>). Porque é certo que o Carnivore não é suficientemente poderoso para assustar, mas rompida a resistência moral contra seu uso, nada impede que um programador competente desenvolva um programa que realmente funcione. Portanto, se eu fosse você, doravante pensaria duas vezes antes de enviar uma mensagem à(ao) namorada(o) afirmando que: “Seu beijo é dinamite e me fez explodir de emoção”.

Em resumo: os EUA e o mundo estão hoje diante de um dilema: vale a pena violar a privacidade do cidadão em nome da segurança? Sugiro meditar sobre o assunto. Quanto a mim, já tenho opinião formada. Uma opinião magistralmente sintetizada na frase com que Cora Rónai fecha seu artigo acima citado: “Quando se vasculha tudo, o tempo todo, alguma coisa sempre se encontra - mas não o suficiente para que, em nome dela, se prive toda uma sociedade de seus direitos básicos e de sua liberdade de expressão”. Falou e disse.

B. Piropo