Escritos
B. Piropo
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20/02/1995

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Eu ainda me lembro da primeira vez que vi um CD-ROM. Provavelmente um dos primeiros, pois se a memória não me trai, já lá se vão quase dez anos. O drive era um trambolho enorme, do tamanho de um aparelho de vídeo cassete. E a coisa me impressionou vivamente: foi em um congresso de engenharia e o disco continha uma lista de publicações sobre saneamento, catalogadas pela Organização Mundial de Saúde. Que podia ser consultada pelo nome do trabalho, assunto, palavra chave ou autor. E, achando-se algo de interesse, podia-se ler o resumo e localizar o endereço da instituição responsável pela publicação para solicitar uma separata. Só quem já gastou dezenas de horas em empoeiradas bibliotecas pesquisando bibliografia técnica pode dar o devido valor a um negócio desses.

Isso aconteceu em uma época em que eu nem ao menos me interessava por informática e meus dedos ainda eram virgens de teclado. Mas bem me recordo da impressão que me deixou: um meio de armazenamento de informações como aquele, de fácil consulta e capacidade quase infinita (lembre-se que há dez anos, um disco rígido de 20Mb era uma enormidade) tinha um potencial extraordinário, com inesgotáveis possibilidades de aplicação em quase todo campo de conhecimento humano.

Naqueles tempos eu jamais poderia sonhar que, um dia, eu mesmo teria um bicho daqueles em minha mesa de trabalho. E muito menos que aquela fantástica tecnologia pudesse se disseminar tão rapidamente. Mas o fato é que hoje há milhões de drives CD-ROM espalhados pelo mundo, cem mil deles em micros aqui mesmo no patropi. Quantidade suficiente para pôr uma gigantesca massa de informação didática, tecnológica e científica ao alcance de milhões de usuários de computador.

Mas será que põe mesmo? Bem, a tecnologia, sem dúvida, está madura, barata e disponível. Mas e as informações? Será que estão, de fato, a nosso alcance? Será que essa formidável tecnologia de armazenamento de massa está, realmente, sendo usada para nobres fins? Vejamos: se você tem um drive CD-ROM, faça um exame crítico de sua pilha de discos. Veja lá quantos, de fato, contêm informações úteis. E quantos não passam de lixo. Lixo bem embalado, lixo tecnológico irrepreensivelmente bem feito, lixo multimídia prenhe de cores, som e fúria. Mas, indubitável e indiscutivelmente, lixo.

Note que não me refiro a joguinhos. Jogo é jogo, e mesmo eu não sendo chegado, reconheço que um bom jogo tem lá seus atrativos. Nem aos indefectíveis CD-ROM de mulher pelada, o grande sucesso do momento: eu as prefiro em carne e osso, mas há gosto para tudo e longe de mim me meter a fiscal dos valores morais da civilização cristã ocidental. Mas se você quer ter uma idéia do tipo de lixo a que me refiro, dê uma olhada em um catálogo de uma distribuidora de discos CD-ROM. Qualquer catálogo de qualquer distribuidora.

Agora mesmo, recebo a informação de mais dois momentosos lançamentos, bem dentro do espírito do Valentine's Day, o dia dos namorados lá dos EUA.

O primeiro chama-se CD-Romance e a culpada pelo lançamento é a Romulus Production, de Carmel, EUA. Trata-se de um CD-ROM cheio de anúncios pessoais. De pessoas que estão procurando, digamos, um par. São mais de trezentos anúncios que incluem um vídeoclip do produto oferecido, um texto com descrição e gostos pessoais, a especificação do par desejado e até um bilhete, manuscrito pessoalmente pelo produto anunciado. E, já que um computador é excelente para indexar buscas, nada impede que você procure apenas por fumantes, não fumantes, apreciadores de gatos, cães e sei lá mais o que. Até por artistas prediletos. Quer uma dama que aprecie Madonna? Pois ela existe: chama-se Kate e está a fim de alguém que beba apenas socialmente e que não tenha filhos. O disco é somente a primeira edição. A Romulus pretende perpetrar quatro por ano, incluindo, caso haja freguesia, edições especiais para gays. O disco custa US$ 49,95 e, por enquanto, os anúncios são grátis (se está interessado em anunciar algum produto, apresse-se: a Romulus pretende cobrar de US$ 50 a US$ 75 para quem quiser constar das edições futuras).

O outro lançamento é o "Romantic Adventures", um programa desenvolvido por Gregory J. P. Godek, que também cometeu os "1001 Ways to be Romantic" e "Romance 101". Roda em Windows e contém um banco de dados idéias românticas, seja lá que diabo isso for. Segundo a notícia, "o programa oferece algumas sugestões específicas para adicionar romance à sua vida". Por exemplo: recomenda que você enxágüe as mãos em água bem quente antes de ir para a cama (acompanhado, naturalmente). Tente: se o ser amado não saltar fora da referida cama alegando que, com uma febre dessas, você possivelmente tem algo contagioso, talvez funcione.

Mas o programa é flexível: se você não gostar das sugestões de Mr. Godek, pode incluir suas próprias idéias. E se, decididamente, não recear enfrentar o ridículo, pode pedir ao ser amado que atribua uma nota, de um a dez, quantificando o grau de romantismo das idéias de sua própria lavra. Assim, na próxima vez que for praticar amor, basta ligar o micro imediatamente antes e consultar o banco de dados indexado para escolher as mais eficazes. O que torna o programa pouco recomendável para os usuários do OS/2, cujo boot demorado pode arrefecer o entusiasmo para a refrega.

Pois é isso. E pensar que tem gente que recorre à mais moderna das tecnologias e gasta tempo e esforço para estultices desse quilate.

Mas a vida é assim mesmo. E a tecnologia, depois de pronta e desenvolvida, acaba tomando rumos incontroláveis e nem sempre é usada conforme os planos originais.

Garanto que o inventor da televisão nem cogitava desses desenhos animados japoneses que infestam o éter durante a tarde.

Sem mencionar o pobre Gutemberg. Que, quando inventou a imprensa, começou pela Bíblia e jamais poderia imaginar que um dia sua invenção seria despudoradamente usada para uma Trilha Zero como essa...

B. Piropo