Escritos
B. Piropo
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15/05/1995
<TWAIN>

O que despertou meu interesse pela informática foi a possibilidade de fazer meus próprios programas. Por isso, tão logo comprei meu primeiro micro, matriculei-me em um curso de Basic. Onde fiz duas descobertas extraordinárias: a primeira é que programar não era fácil como parecia. A segunda é que "Basic", o nome da linguagem de programação mais, digamos assim, básica, que eu conheço, não é propriamente um nome mas um acrônimo: vem de "Beginner's All-purpose Symbolic Instruction Code".

Essa não foi a minha primeira surpresa com designações que parecem nomes mas são acrônimos: o método Pert, que eu jurava ter sido inventado por um certo Mr. Pert, não passa de uma mísera Project Evaluation and Review Technique. E scuba, esse trambolho que os mergulhadores carregam nas costas, nada mais é que um mero Self Contained Underwater Breathing Apparatus. Mas pensando bem, no caso do Basic eu nem deveria ter me surpreendido. Pois não conheço jargão onde mais se abuse de acrônimos que o computês. Até parece que, em informática, as pessoas se comunicam através de siglas. É SCSI, RAM, EIDE, ATAPI, o diabo. Já chegaram mesmo ao exagero supremo: VLB é o acrônimo de VESA Local Bus. E VESA, por sua vez, vem de Video Electronics Standards Association. Quer dizer: enfiaram uma sigla dentro de outra. Pode ser que o objetivo seja simplificar a linguagem, como alegam os siglófilos. Já eu, notório siglófobo, acho que isso não passa de esnobismo. Mas os fabricantes, comitês, técnicos em geral e pseudo-gurus jamais irão abandonar esse feio vício. Afinal, um acrônimo faz com que qualquer porcaria pareça ter um nome importante.

Pois bem: nesse mundo de siglas, havia uma que me deixava deveras encasquetado. Trata-se de TWAIN, um padrão que permite que scanners capturem imagens diretamente de dentro de aplicativos (já explico). Acontece que, um dia, eu já soube o que ela queira dizer. E lembro que o significado de suas letras chamou-me a atenção pelo inusitado. O problema é que, até há pouco, disso era tudo que me lembrava. O significado das letras, que interessava, perdera-se nas brumas do esquecimento.

Bem que eu tentei. Toda a vez que me batia nas mãos um dicionário técnico ou fonte de consulta igualmente confiável, lá ia eu vorazmente em busca da informação almejada. E nada: no máximo, encontrava a descrição do padrão. Mas o que cada uma das letras representava, jamais. E aquele negócio já estava me encucando. A mim e a meus amigos, que confessaram todos uma ignorância ao menos igual à minha, já que os poucos que sabiam do que se tratava vinham lá com a história do padrão - que eu já estava farto de conhecer. Mas a sigla, mesmo, nenhum jamais destrinchou. Até que recentemente, consegui enfim decifrar o mistério.

Mas, afinal, o que é twain? Bem, vamos começar a explicação por "scanner". Que é um dispositivo capaz de digitalizar imagens, ou seja, capturar imagens impressas e convertê-las em bytes, permitindo que sejam armazenadas na memória, exibidas no vídeo e gravadas em disco. Há dois tipos básicos de scanners: de mão e de mesa. Nos modelos de mesa você introduz uma folha de papel com a imagem. O scanner "lê" a imagem, codifica suas cores (ou tons de cinza, no caso dos scanners em preto e branco) sob a forma de bytes (portanto, "digitaliza" a imagem) e a exibe na tela ou grava em disco. Os modelos de mão, mais simples e baratos, fazem o mesmo. A diferença é que você tem que movimentá-los com a mão sobre a imagem.

Até pouco mais de três anos cada fabricante de scanner desenvolvia seus próprios drivers e programas para captura de imagens. O que tornava o processo de edição de imagens bastante tedioso. Veja lá: você tinha, primeiro, que capturar a imagem usando o driver e o programa fornecido com o scanner, gravá-la em um arquivo e, só então, carregar esse arquivo em seu programa gráfico preferido para fazer as modificações necessárias (ou você acha que sem um bom editor de imagens para retocar certos pontos, digamos, estratégicos, aquelas abundantes moçoilas que aparecem nas revistas de mulher pelada seriam assim tão imaculadamente isentas de celulite?).

Pois bem: para facilitar nossa vida, os fabricantes de scanners criaram um comitê para desenvolver um protocolo de troca de dados entre scanners e aplicativos. Uma espécie de linguagem comum aos scanners e programas de edição de imagens. A esse protocolo deram o nome de twain. Com ele, os scanners e programas gráficos podem trabalhar juntos e as imagens são capturadas de dentro do próprio programa. Ou seja: se programa e scanner aderem ao padrão, tudo o que se precisa para capturar a imagem é ligar o scanner, carregar o programa, abrir o menu "File" e acionar a opção "Scan". Como, graças ao twain, scanner e programa formam uma dupla harmônica, o scanner pode ser acionado de dentro do mesmo programa gráfico que vai editar a imagem. Qualquer scanner e qualquer programa, desde que ambos obedeçam ao padrão. Isso é o twain. Mas a palavra "twain", afinal, o que quer dizer? Ora, basta consultar o dicionário. No The American Heritage você encontrará algo assim:

twain: Two; A set of two; The two-fathom mark on a sounding line used on riverboats (twain: dois; um conjunto de dois; a marca de duas braças na sonda usada em embarcações fluviais).

Uma consulta instrutiva. Por exemplo: o último significado inspirou o notável cavalheiro Samuel Langhorne Clemens, que entre outras coisas na vida foi piloto de barco no Mississipi, a adotar como pseudônimo o nome da marca acima da qual navegar se tornava perigoso. E passou a assinar Mark Twain. Já os dois primeiros, além de ensejar citações que vão fazer você parecer incrivelmente erudito (desde que você consiga encontrar uma chance de usá-las, naturalmente), como "Oh, East is East, and West is West, and never the twain shall meet ", de Kipling, ou "I must become a borrower of the night for a dark hour or twain", de Shakespeare, são mais que elucidativos. Porque informam que twain que dizer dois, dupla, conjunto de dois.

Mas esse é justamente o objetivo do padrão: fazer com que scanner e aplicativo funcionem de forma harmônica, transformando o conjunto em uma coisa só, uma dupla, um "twain". Quer dizer: twain, afinal, não é uma sigla, mas um nome. E, coisa rara na nomenclatura da informática, um nome inteligente e dos mais apropriados.

Mas então como foi que eu disse que já soube o significado das letras? Ah, é que um negócio desses tinha que ser um acrônimo. Não conheço nada que mais se pareça com um. Nem eu, nem ninguém. Tanto, que viviam perguntando ao pessoal do comitê o que representavam as letras. E perguntaram tanto que um dia eles resolveram criar um significado para cada uma. E lascaram lá: Toolkit Without An Important Name.

Que quer dizer: "conjunto de ferramentas sem um nome importante". Vocês podem não acreditar, mas eu juro que é isso mesmo. Sem brincadeira.

B. Piropo