Escritos
B. Piropo
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30/10/1995

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Minhas máquinas jamais vieram prontas "de fábrica". Todas, com exceção do velho MSX e do primeiro PC comprado quando eu ainda não ousava remover a tampa do gabinete, foram adquiridas aos pedaços e montadas por mim. Por isso mesmo, enquanto os demais vão migrando de micro em micro, alguns pedaços me acompanham há muito tempo. Como meu falecido teclado, um valente Northgate.

O bichinho era uma maravilha. Foi comprado em San Francisco, a única cidade do mundo cuja beleza se compara à desse velho e maltratado Rio de Janeiro, há quase dez anos. Um tempo inimaginavelmente longo para a sobrevivência de um periférico. Mas, afinal, tratava-se de um teclado. E uma peça tão primorosamente concebida que teria sobrevivido ainda por muitos anos não fora o imperdoável erro que cometi em aceitar o gentil oferecimento de minha não menos gentil namorada para limpá-lo, esquecendo-me de como ela leva a sério essas questões de limpeza. Tanto, que desde então tenho um teclado imaculado, porém inoperante: o pobre não resistiu ao fervor com que foi atacado com água e detergente e nunca mais deu o ar de sua graça.

Um velho teclado, encostado porque uma das teclas de seu teclado numérico não funcionava, quebrou o galho provisoriamente enquanto eu procurava um substituto razoável. E quanto mais procurava mais me impressionava o fato de não encontrar nada que prestasse (ou de, em encontrando, não conseguir comprar: o único teclado realmente decente que achei em meses de busca foi o de um dos modelos do Aptiva da IBM, aquele que tem o corpo metálico - mas que, por incrível que pareça, jamais encontrei quem estivesse disposto a vender separadamente). Uma coisa deveras impressionante, já que, sendo o teclado o periférico com o qual nossa interação é mais intensa, seria de esperar que houvesse dezenas de modelos disponíveis, cada um ao gosto de um freguês - em vez de se tropeçar sempre na mesma porcaria "made in Taiwan". É verdade que tem o teclado da Microsoft, aquele cheio de curvas que, dizem, é a última palavra em ergonomia. Mas custa uma nota preta, mais do que eu estou disposto a pagar por algo com que talvez eu não venha a me adaptar.

Semana passada, desisti do teclado ideal e me contentei com o que me pareceu um substituto aceitável. Encontrei-o em uma dessas lojas de shopping. É meio vagabundo, todo de plástico, fraquinho. A tecla Backspace é pequena, para mim um defeito terrível. Mas tem uma característica que me é essencial: um toque agradável, desses em que se sente a resistência da tecla e ouve-se o "clique" quando ela fecha o contato. Nada parecido com o meu velho e saudoso Northgate, mas bem que dava para quebrar o galho. E com uma vantagem: conforme pensei ter lido no rótulo da embalagem, era um teclado "em português". Abri a caixa e conferi: de fato, lá estava o cê-cedilha. Então vamos nessa, pensei. Comprei o bicho, trouxe-o para casa e instalei-o.

Conhecedor dos mistérios da instalação do OS/2, decidi começar por Windows 95, que me pareceu mais simples para lidar com essas coisas. Quebrei a cara. Como tinha trocado um periférico, nem discuti e abri o objeto "Adicionar novo hardware" do painel de controle. Informei que não queria que Windows detectasse o novo componente e selecionei a instalação de teclado. Dentre as opções disponíveis, escolhi a que me pareceu correta, teclado de 101/102 teclas. Segui as instruções, acabei com dois teclados idênticos instalados e fui informado por Windows que estava diante de um conflito de hardware. Para dirimi-lo, tive que desinstalar a ambos e instalar novamente um deles, ficando exatamente onde estava antes: teclava meu novo cê-cedilha e aparecia na tela um ponto-e-vírgula. Foi preciso muito tempo até descobrir que, em Windows 95, para mudar a configuração do teclado eu deveria abrir o objeto "Teclado" (o que é lógico e intuitivo), selecionar a página "Idioma" (o que talvez também seja lógico, mas nem tanto intuitivo já que eu não estava mudando o idioma, mas sim trocando o teclado) e clicar no botão "propriedades" (o que nada tem de lógico nem de intuitivo, já que a disposição das teclas em um teclado pode ser qualquer coisa, menos uma das "propriedades" de qualquer idioma...). No OS/2 foi muito mais fácil: bastou abrir o objeto "Instalação seletiva", informar que queria instalar um novo teclado e obedecer os prompts.

Mas instalar que teclado? Bem, as opções que Windows 95 me oferecia eram "Português Brasileiro ABNT2", "Português Brasileiro Padrão" e "Português Padrão", nessa ordem (as do OS/2 eram "Brasileiro 274", "Brasileiro 275" e "Português"). Como não sabia qual delas combinava com o meu teclado, parti para a velha tentativa e erro. Na ordem. Primeira tentativa, primeiro erro. Segunda tentativa, segundo erro. Foi somente na terceira tentativa que tudo funcionou nos conformes.

Mas um momento: a terceira tentativa não era nenhuma das opções de teclado brasileiro, era "Português Padrão". Que diabo estava acontecendo? Fui olhar direito na embalagem e lá estava: "Teclado Português", não "Teclado em Português" como eu havia pensado. Em suma: tratava-se mesmo de um teclado lusitano.

É um teclado um bocado diferente. Fora as teclas alfanuméricas, ou seja, as letras do alfabeto (inclusive o "B" e o "V" que, surpreendentemente, não alternaram as posições) e os números de 1 a 0, tudo o mais parece que foi alterado. O sinal de adição e o asterisco desceram e se aninharam ao lado do "P", onde antes moravam colchete e chave, que subiram, passaram a dividir as teclas dos números de sete a zero e agora só são acessíveis mediante o acionamento simultâneo da tecla AltGraph, situada à direita da barra de espaço. Que também tem que ser acionada para obter o caractere da libra esterlina (que subloca a tecla do número três), o sinal de parágrafo (junto ao quatro) e o de arroba (compartilhando a tecla do dois), este último tão popular na Internet e agora inacessível de dentro do Word para Windows (que se recusa a aceitar a tecla AltGraph exceto para as chaves e o sinal de parágrafo). Algumas das teclas que mais uso foram deslocadas para locais pouco acessíveis, como a barra inclinada do OS/2 que agora mora no Shift+7. Em contrapartida apareceram caracteres que jamais usei e, presumo, nunca usarei, como os sinais que, na falta de designação melhor chamo de "duplo-maior-que" e "duplo-menor-que", que usam uma tecla só para eles (socorram-me meus amigos dalém mar, onde sei que essa coluna é lida: como chamam-se esses sinais? e, sobretudo, para que servem esses malditos trambolhos gráficos?).

Pois é isso. O novo teclado cá está e essa coluna já foi digitada nele. Ter o cê-cedilha diretamente ao alcance do mínimo da mão direita é prático, assim como poder obter o til sem teclar Shift. Mas vai demorar um bocado até me adaptar às novas posições das teclas - se é que de fato algum dia me adaptarei.

Enquanto isso, vou tentando. E se vocês detectarem nessas mal traçadas um leve sotaque lusitano, explica-se: com certeza é o teclado.

B. Piropo