Escritos
B. Piropo
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18/11/1996

< Informatização >


Em princípio, a série sobre memórias abordaria apenas os aspectos básicos do tema. No entanto, na medida que ela se desenvolvia, percebi que certos detalhes eram fundamentais para o entendimento do assunto e me senti obrigado a discuti-los - o que resultou em uma série inusitadamente extensa. E para que não fique parecida demais com a célebre espada d'Affonso Henriques, que além de comprida era chata, decidi interrompe-la de tempos em tempos e abordar temas mais amenos. Não se aflijam que semana que vem ela prossegue. Mas hoje vamos discutir os benefícios da informatização. Que são tidos como garantidos e infalíveis, ou seja: informatizou, melhorou. Será que é assim mesmo?

Nem sempre. Tome-se como exemplo a cobrança do estacionamento do Rio Sul. Antigamente recebia-se um canhoto na entrada, com ele pagava-se o estacionamento em um dos caixas espalhados pelo shopping, entregava-se o recibo na saída e ia-se embora certo de se ter sido vítima de uma ilegalidade (no Rio a cobrança de estacionamento em shoppings é ilegal, mas afinal o jogo de bicho também é e ninguém liga), porém rápida e indolor. Então resolveram informatizar. Agora, pega-se o ticket em uma máquina junto à entrada, tenta-se pagar em outra máquina que trava, engole seu dinheiro e provoca filas imensas enquanto uma jovem aflita tenta fazê-la funcionar, e ao sair do estacionamento enfia-se o recibo em uma trapizonga que ou simplesmente o rejeita ou leva cinco minutos para aceitá-lo enquanto você o esfrega freneticamente no slot da leitora de código de barras. Ou seja: a mesma ilegalidade, porém agora demorada e dolorosa. Fruto da informatização.

Há outros exemplos. Agora mesmo, voltando de Natal onde fui participar do SUCESU 96, passei o fim de semana em Fortaleza que ninguém é de ferro. E fui conhecer o Beach Park, um interessantíssimo complexo de lazer à beira mar plantado. Que, exceto por não fornecer nem alugar toalhas (fato extraordinário em se tratando de um parque aquático), até parece coisa de primeiro mundo. Pois também lá o serviço dos bares e restaurantes foi informatizado. O pedido é feito a jovens que circulam entre as mesas com uma portentosa maquineta pendurada na cintura. O trambolho registra o pedido e o transmite via rádio até uma central, de onde imediatamente deveria ser enviado à mesa. Mas não é. Meia hora depois (sem exagero: cronometrada) você reclama, o jovem digitador presume que o pedido não foi recebido na central e o digita novamente. Resultado: se tiver paciência, quarenta minutos mais tarde recebe-se o pedido em dobro (cerveja e água de coco, portanto não me venham com a desculpa que demorou para preparar). Se o rapaz que registra o pedido deixasse de lado a maquineta e fosse buscá-lo diretamente na central, chegaria em cinco minutos.

Mas eu seria injusto se não citasse também exemplos em que a informatização trouxe benefícios. Citarei apenas um. Que, no entanto, vale por mil.

Dentre as atividades que consomem meu tempo e me recompensam com muito prazer e dinheiro pouco, está a de ensinar. Por levá-la a sério, sempre chego à faculdade antes dos alunos e leio alguma coisa enquanto por eles espero.

Quatro de outubro foi um destes dias. E mesmo lendo, minha atenção foi desviada para o papo da faxineira com o bedel. Ela, uma senhora já entrada em anos, humilde, visivelmente de poucas letras, comentava com imensa alegria a eleição da véspera. Quando, pela primeira vez, havia afinal votado. E era esta a razão de tanta felicidade.

Não resisti e meti-me na conversa. E às outras, não comparecera? Claro que sim. A todas. Mas sempre anulava o voto. Porém - e sua voz vibrava de orgulho e felicidade ao dizê-lo - na da véspera ela havia votado tanto para prefeito quanto para vereador.

Com muito tato fiz fluir a conversa para me certificar do que já desconfiara. Se o voto lhe dava tanta satisfação, por que ela sempre o anulara? É que, disse ela, desta vez foi mais fácil. Bastou "apertar os números". E isto ela bem sabia fazer.

Não foi difícil concluir que até então seu voto era anulado por vergonha. Iletrada, provavelmente semi-analfabeta, era-lhe penoso até mesmo rabiscar na cédula os números dos candidatos escolhidos. Vontade, sempre teve. Mas o receio de cometer um erro e, sobretudo, a vergonha de vê-lo exposto ao público por alguma artimanha que ela não sabia precisar qual fosse mas que temia, sempre a havia impedido de votar. Desta vez, no entanto foi diferente. Votou graças à informatização da eleição.

Como ela, imagino, um número significativo de eleitores que agiam da mesma forma pelas mesmas razões pôde, afinal, exercer a plenitude de sua cidadania e votar. Não sei se os responsáveis pela informatização das eleições imaginaram que, entre os muitos benefícios que ela traria, incluía-se este. Provavelmente não, já que não vi menção a ele nas muitas coisas que li e ouvi sobre a informatização das eleições.

Mas asseguro que mesmo que nenhum outro objetivo houvesse sido atingido - o que não é verdade, pois salvo pequenas e esperadas falhas aqui e ali todo o processo foi muito bem sucedido - somente por este já teria valido a pena. Garanto.

Com a certeza de quem viu - e se comoveu com - o brilho do olhar daquela senhora humilde, repleto de felicidade por lhe terem, afinal, permitido votar.

 

B. Piropo