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B. Piropo

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18/04/2011

< von Neumann III: o matemático >


A mente de von Neumann era peculiar em diversos aspectos. Um deles era a facilidade com que, depois que voltou suas habilidades para as aplicações práticas da matemática, antevia estas aplicações.


Figura 1: Casa da família von Neumann - Budapestn

No início dos anos quarenta do século passado os computadores eram concebidos e desenvolvidos como máquinas destinadas a apressar cálculos. Com efeito, o ENIAC, primeiro projeto com o qual von Neumann se envolveu, embora pudesse efetuar outros cálculos, era destinado essencialmente a desenvolver tabelas a serem usadas pelos artilheiros responsáveis pelos imensos canhões da Segunda Grande Guerra com o objetivo de efetuar cálculos balísticos.
Pois bem: John von Neumann, desde o início, vislumbrou que os computadores eram mais que isto. Em vez de meras “máquinas de calcular tabelas”, ele antevia a possibilidade de usá-los com “máquinas de resolver problemas”. E, coisa rara nos matemáticos teóricos, procurou – e conseguiu com imenso sucesso – usar sua mente privilegiada para desenvolver soluções práticas para problemas nos campos da hidrodinâmica, estatística e teoria dos jogos (considerava a guerra um jogo do tipo “soma zero”, onde a perda de uma parte representava o ganho da outra e aplicava este conceito na tomada de decisões estratégicas). Em função desta rara capacidade de “enxergar os problemas através de suas soluções”, foi consultor de diversas empresas privadas (entre as quais a IBM), de muitos comitês do Governo americano e participou de projetos de grande importância estratégica como o próprio Projeto Manhattan.
Outra característica curiosa desta mente extraordinária era sua capacidade de “continuar onde os outros pararam”. Como logo veremos, ele fez isto em diversos campos, notadamente a mecânica quântica, oferecendo soluções para problemas teóricos nos quais seus colegas, criadores originais da teoria, haviam “empacado”. Dois bons exemplos são suas contribuições à teoria dos conjuntos e à mecânica quântica.
Como mencionado na coluna anterior, a família von Neumann era abastada. A figura mostra a imponente casa onde viveram os von Neumann e onde John passou sua infância e juventude, situada no número 62 da rua Bajcsy-Zslinszky, em Budapest. Em outubro de 2003, conjuntamente, as sociedades matemáticas americana e húngara inauguraram uma placa comemorativa do centenário do nascimento de John von Neumann fixada no local. A placa, de cor clara, pode ser vista na fachada do prédio, acima do automóvel vermelho estacionado na esquina e bem em frente à caminhonete azul. A foto foi obtida na Internet, no < http://www.arthurjaffe.com/ > sítio do Prof. Arthur Jaffe.

O matemático teórico
TEORIA DOS CONJUNTOS – Os primeiros trabalhos de John von Neumann em matemática pura, ainda nos tempos em que vivia em Berlin, foram no campo da teoria dos conjuntos, assunto de sua tese de doutorado. Provavelmente a maioria dos que estão lendo estas mal traçadas mal faz ideia do que se trata, e com justa razão já que ultimamente pouco se tem falado dela. Mas há cerca de meio século a teoria dos conjuntos estava, digamos, “na moda”, e havia mesmo um movimento entre os pedagogos no sentido de abandonar o ensino tradicional de matemática e começar, desde o curso primário, a familiarizar as crianças com esta teoria para, através dela, entrar no mundo da aritmética (eis aqui, batucando neste teclado, uma vítima destes fariseus). Quando von Neumann dedicou sua atenção a este campo, a teoria dos conjuntos padecia de uma inconsistência formal denominada < http://plato.stanford.edu/entries/russell-paradox/ > “paradoxo de Russel”. Vou tentar explicar (ao menos o paradoxo; sua solução, concebida por von Neumann, já será mais complicada).


Figura 2: Um dos elementos “m” do conjunto “MX”

Um “conjunto” é um grupo de objetos bem definidos, em geral em função de uma propriedade comum. Estes objetos são “membros” ou “elementos” do conjunto e podem ser qualquer coisa: números, pessoas, coisas, animais e até mesmo outros conjuntos. Se um objeto é membro de um conjunto, então se diz que ele “pertence” ao conjunto.
Conjuntos são objetos peculiares. Em tudo o que diz respeito à teoria dos conjuntos a ordem dos elementos é irrelevante e elementos podem ser repetidos. O que realmente importa é saber se o objeto pertence ou não ao conjunto (é a teoria dos conjuntos que permite estabelecer a melhor definição que conheço para “número”, uma definição recursiva: “número é o conjunto de todos os conjuntos que contêm o mesmo número de elementos”).
Dentre as diversas formas de especificar um conjunto a mais comum é a dita “intencional”, ou seja, a que se baseia na propriedade comum a seus elementos. Ela usa a seguinte notação:
X = {a: a tem tal propriedade}
Que se lê: “o conjunto ‘X’ dos elementos ‘a’ tais que cada um deles tem tal propriedade”. Por exemplo, pode-se definir o conjunto particularmente importante MX:
MX = {m: m tem olhos verdes e sorriso encantador}
(a particular importância deste conjunto deve-se ao fato de que Mariana Ximenes, o elemento m mostrado na Figura, pertence a ele, felizardo!)
Mas vamos ao paradoxo de Russel, que é o que importa no momento.
Defina-se o conjunto Z, cuja condição é ser formado pelos “conjuntos que não são membros de si mesmos”, a saber:
Z = {x: x não é membro de x}
Em tese, nada impede que se use esta definição para estabelecer um conjunto, já que, conforme determina a própria teoria dos conjuntos, eles podem ser estabelecidos a partir de qualquer condição coerente (e se não houver em todo o universo um só elemento que a exiba teremos um conjunto “vazio”, o que não invalida a definição).
Então, com base na definição acima, diga-me lá: Z é um elemento de Z?
Se for, alguma coisa está errada, já que, pela definição, Z é o conjunto dos conjuntos que NÃO pertencem a si mesmos. Portanto, com base na própria condição que estabelece Z, somos obrigados a afirmar que Z não pertence a Z. Agora examine novamente a condição e veja que ela abrange o conjunto dos conjuntos que NÃO pertencem a si mesmos. E o conjunto Z se enquadra perfeitamente nela, pois acabamos de provar que Z não pertence a Z. Portanto, podemos concluir que Z pertence a Z.
Se, neste ponto, você acaba de exclamar um sonoro “cuméquié?”, então é porque percebeu a natureza do paradoxo.
E uma teoria que contém um paradoxo como este não pode ser considerada uma teoria consistente. Para que seja, é preciso estabelecer uma base teórica sólida que permita excluir do universo de todos os conjuntos aqueles que sejam um elemento de si mesmos.
Pois bem: foi exatamente isto que fez von Neumann em sua tese de doutorado, estabelecendo o < http://en.wikipedia.org/wiki/Axiom_of_foundation > “axioma da regularidade” e a noção de < http://en.wikipedia.org/wiki/Class_(set_theory) > “classe”.
Quer saber como? Ora, me poupe! Basta clicar nos atalhos aí de cima...
MECÂNICA QUÂNTICA – Em minha opinião mecânica quântica é um dos mais fascinantes campos do conhecimento humano. Tanto assim que ultimamente tenho lido – e aprendido – muito sobre ela. E tudo o que li e aprendi me leva a uma conclusão indubitável: não dá para escrever colunas sobre. E não porque o tema seja controverso. Controverso, hoje em dia, já não é mais (e qualquer pessoa que acompanhe atentamente as realizações dos jovens – porém já famosos e eminentes – cientistas Sheldon L. Cooper e Leonard Hofstadter sabe disto). A questão é que para entender seus conceitos mais básicos é exigido tamanho grau de abstração e um divórcio tão radicalmente litigioso com a mecânica newtoniana e a geometria euclidiana que, honestamente, por mais que eu os entenda (e, para ser sincero, eu os entendo muito menos do que gostaria e necessitaria para escrever a respeito), não me sinto capaz de discorrer sobre eles. Mas, para quem tiver muita disposição, sólida base teórica e não se desnortear perante o absolutamente novo, recomendo enfaticamente uma incursão nos tortuosos campos da mecânica quântica pois, correndo o risco de me tornar repetitivo, não tenho como deixar de enfatizar: é absolutamente fascinante.
A contribuição de von Neumann para a mecânica quântica deu-se em uma época em que ela ainda estava no nascedouro e seus princípios básicos sendo concebidos. Em épocas como esta, é natural que diferentes teorias ao mesmo tempo convirjam e se choquem. A contribuição de von Neumann foi essencial para conciliar alguns destes choques.
Como eu disse, não dá para entrar em detalhes aqui. Mas, para os interessados, o primeiro livro publicado por John von Neumann (1932) foi, justamente, “Mathematische Grundlagen der Quantenmechanik”. Para quem achar o texto em alemão demasiadamente complexo, informo que a Amazon vende pela pechincha de US$ 49,61 (o preço original era US$ 78,50 mas presumo que o fato de não ser propriamente um sucesso de vendas forçou a Amazon a reduzi-lo) a edição em inglês, “Mathematical Foundations of Quantum Mechanics”. Corra para garantir o seu, que só há 23 exemplares novos disponíveis e desconfio que depois que esta coluna for publicada e com toda esta propaganda, muito provavelmente este número cairá vertiginosamente. Talvez, quem sabe, para 22.

Matemática aplicada
TEORIA DOS JOGOS – A < http://en.wikipedia.org/wiki/Game_theory > teoria dos jogos não é, como pensam alguns, a tentativa de desenvolver uma forma de ganhar sempre nos jogos de azar. Ao contrário, trata-se de um ramo da ciência capaz de criar modelos matemáticos que emulem situações estratégicas, chamadas de “jogos”, nas quais a chance de um indivíduo fazer escolhas bem sucedidas dependem diretamente das escolhas feitas por terceiros. Ela é aplicável em diversos campos da atividade humana (nos tempos modernos tem aplicações notáveis nas ciências econômicas). O interesse de von Neumann foi despertado para ela ainda nos idos de 1928, quando fez sua grande contribuição: a demonstração do teorema < http://en.wikipedia.org/wiki/Minimax_theorem > “minimax”. E a usou intensamente para estabelecer estratégias dos aliados na Segunda Grande Guerra pois a guerra, como vimos alhures, pode ser considerada como um “jogo de soma zero”.


Figura 3: Von Neumann – selo comemorativo

O teorema minimax se aplica a jogos em que cada um dos jogadores conhece, a cada momento, todas as jogadas efetuadas até então. Assim, ao analisar as diferentes estratégias que pode adotar, cada um deve considerar todas as possíveis respostas do adversário. O teorema estabelece que há sempre um par de estratégias para ambos os jogadores, chamadas “estratégias ótimas”, que permite a cada um minimizar o montante de suas perdas máximas (daí o nome “minimax”) e que os valor do minimax de um dos jogadores é igual em valor absoluto ao valor do outro, porém com o sinal oposto (o que justifica a classificação do jogo como “de soma zero”).
Mas a contribuição de von Neumann para a teoria dos jogos não parou aí. Durante toda sua vida ele ofereceu novas e importantes contribuições que foram de grande uso prático na análise econômica e no desenvolvimento da < http://en.wikipedia.org/wiki/Linear_programming > programação linear. Em 1944, em coautoria com Oskar Morgenstern, publicou o livro “Theory of Games and Economic Behaviour” e durante anos ofereceu consultoria a grandes empresas como analista de tendências da economia.
ENERGIA NUCLEAR – Como mencionado anteriormente, von Neumann integrou o grupo de cientistas de elite reunido pelo Governo americano no Projeto Manhattan, criado com o objetivo de desenvolver um artefato nuclear para ser usado na Segunda Grande Guerra (que resultou na Bomba A, ou bomba atômica) e que, no após guerra, particularmente no atribulado período conhecido como “guerra fria” no qual se desenrolou a chamada “corrida nuclear” entre EUA e URSS, continuou seus trabalhos em Los Alamos e produziu, entre outras coisas, a Bomba H, ou bomba de hidrogênio (cuja detonação só foi possível devido ao desenvolvimento, por von Neumann, da chamada “lente de implosão” capaz de comprimir o plutônio até o ponto de implosão).
Não cabe aqui discutir os aspectos éticos da participação direta de acadêmicos e cientistas no desenvolvimento de artefatos destinados à destruição – em tempos de guerra ou não. Pode-se sempre apelar para o argumento que garante que quanto maior o poder de destruição de um artefato, maior seu poder de dissuasão perante o inimigo que pensa em iniciar atividades hostis e, desta forma, a fabricação de artefatos cada vez mais poderosos funciona para garantir a paz, não para provocar a guerra – e, de fato, esta era a ideia essencial por detrás da corrida nuclear, com seu lema “si vis pacem, para bellum” (“se queres a paz, prepara-te para a guerra”). Admito que alguém possa compartilhar estas ideias imbuído de boa fé e, portanto, achar que seu engajamento no esforço de guerra visa em última análise garantir a paz. Esta é uma questão ética e filosófica que deve ser discutida alhures. Mas não vejo razão para omitir minha opinião (que, não obstante, me absterei de discutir nos comentários): creio que nada justifica canalizar parte substancial dos recursos econômicos de uma nação – ou de duas, como no caso da disputa nuclear direta durante a guerra fria, ou ainda de diversas, como a que ocorre em nossos dias envolvendo alguns países do Oriente – para produzir (como foi produzido na guerra fria) uma quantidade de artefatos nucleares suficientes “para destruir o mundo cinquenta vezes” (frase que está entre aspas porque para mim não faz sentido pois, para todos os efeitos práticos, uma única vez basta). Mas, enfim, como bem disse Albert Einstein (outro destacado membro do Projeto Manhattan), a estupidez humana é infinita e, mais uma vez citando Nelson Rodrigues, “a humanidade não deu certo”, razão pela qual ainda há nações empenhadas no desenvolvimento deste tipo de artefato.
Seja como for é preciso lembrar que o conhecimento gerado no Projeto Manhattan propiciou o desenvolvimento de diversas atividades pacíficas, como a (duvidosa) geração de energia nuclear, e contribuiu enormemente para a medicina moderna, como a (fabulosa) luta contra o câncer, o desenvolvimento da medicina nuclear e o estabelecimento de técnicas não invasivas de diagnóstico e exames, entre diversas outras contribuições notáveis para a melhoria da qualidade de vida da humanidade. E, para o bem ou para o mal, a contribuição de John von Neumann para este conhecimento foi relevante.
INFORMÁTICA E COMPUTADORES – É impressionante como, em seu tempo, foi dado pouco valor às realizações de John von Neumann no campo da informática e relegado a segundo plano seu extraordinário papel na concepção das primeiras máquinas a merecer o nome de “computador”. Sua biografia oficial, escrita para a Academia de Ciências americana por Salomon Bochner, tem dez páginas nas quais suas atividades neste campo se resumem a este único parágrafo: “"... in 1944 von Neumann's attention turned to computing machines and, somewhat surprisingly, he decided to build his own. As the years progressed, he appeared to thrive on the multitudinousness of his tasks. It has been stated that von Neumann's electronic computer hastened the hydrogen bomb explosion on November 1, 1952" (em 1944 a atenção de von Neumann se voltou para os computadores e, surpreendentemente, ele decidiu montar seu próprio. À medida que os anos progrediam, ele revelou-se bem sucedido na multifacetada tarefa. Dizem que o computador eletrônico de von Neumann antecipou a explosão da bomba de hidrogênio em primeiro de novembro de 1952).
Um único parágrafo, e não obstante tão pouco esclarecedor – quando não equivocado...
Vamos tentar reparar esta injustiça dedicando a este tema um espaço condizente com a importância do trabalho deste gênio da humanidade em prol da informática moderna.
Semana que vem, naturalmente.


B. Piropo