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Sítio do Piropo

B. Piropo

< O Globo >
 
30/12/2002

< Eu e o Outro >

Capa Informática Etc. 30/12/2002
Capa do Informática Etc. de 30/12/2002

B. Piropo tem apenas onze anos. Filho de Cora Rónai e Peter Norton, nasceu em quatro de março de 1991, com a primeira edição deste caderno. Com tão pouca idade, falta-lhe perspectiva para escrever sobre si mesmo. A tarefa caberá a mim, seu alter-ego, cuja vida nos últimos onze anos se confunde com a dele. Falemos, então, da minha, para que possamos entender a dele. Mas poupa-los-ei da descrição da infância de um garoto gordo e feioso, de óculos, que lia compulsivamente tudo o que lhe caía nas mãos, incluindo bula de remédio. Pulemos esse pedaço, saltemos a adolescência e juventude, com sua série previsíveis de desatinos, e sigamos para o ponto que interessa: meu envolvimento com computadores.

Rolava mais ou menos a metade dos anos oitenta. Quarentão, recém desquitado, bem empregado, professor universitário (não era esse o bom emprego, evidentemente), consultor, a vida corria frouxa e eu não tinha o que dela reclamar. Aliás, ainda não tenho. De mulheres a amigos, de viagens a pertences, de alegrias a prazeres ela tem me propiciado bem mais do que mereço. Filho, um só, mas que vale por todos. Conhecidos, muitos. Amigos poucos, mas bons. Alcancei até mesmo o prodígio de haver me tornado amigo da ex-mulher, uma amizade cujo cultivo se deve mais a méritos dela que aos meus. A exceção, talvez, seja dinheiro, que poderia ter vertido com um pouco mais de entusiasmo nesses minguados bolsos. Mas para o essencial não faltou. E a grana que pinta tem bastado para uma vida digna. Portanto, como dinheiro não é o importante, posso me considerar um homem feliz. Fechemos, então, a digressão e voltemos aos anos oitenta.

Na década anterior alguém se dera conta que o extinto BNH andava com a burra cheia de dinheiro e engendrou uma forma de aplicá-lo em obras de saneamento. Começaram então a surgir grandes projetos de saneamento. Muitos deles requeriam uma estação de tratamento de esgotos. Acontece que minha principal atividade profissional, de onde tiro meu sustento, é justamente projetar e operar estações de tratamento de esgotos. E continua sendo, pois embora meia dúzia de colegas afirmem convictamente que “eu agora só quero saber de computador”, isso não passa de um recurso pouco recomendável para reduzir a concorrência e me afastar do mercado que a crise econômica tornou cada vez mais escasso. A verdade é que sigo ainda, firme e forte, usando minha experiência de mais de quarenta anos de profissão para operar e projetar estações.

Um projeto desses não é uma coisa simples. Com base nas características do esgoto bruto e do corpo d’água que o receberá após o tratamento, seleciona-se um pequeno conjunto de processos dos quais se faz o dimensionamento em um nível de detalhamento apenas suficiente para estimar custos. Isto feito, escolhe-se a opção mais econômica cujo projeto é então refinado. Cada passo obedece a um modelo matemático e emprega uma técnica de cálculo determinada. Em suma: além do conhecimento e experiência do projetista, a coisa toda exige uma calculeira braba. Tão braba que na primeira vez que botei as mãos em uma dessas máquinas de calcular eletrônicas hoje vendidas em camelô por cinco merréis mas que naquele tempo custavam algumas centenas de dólares, consegui reduzir o tempo de entrega de um projeto em quase um terço. Era a primeira manifestação de como a tecnologia digital afetaria minha vida, mas confesso que não me dei conta.

Entusiasmado com a maquininha, comprei uma calculadora HP programável. Era uma trapizonga dotada de uma leitora de cartões magnéticos nos quais se podia armazenar uma seqüência de operações e programar interrupções para entrada de valores. As operações consistiam em carregar dados em posições de memória, movê-los para registradores, tomar decisões adotando esse ou aquele ramo de cálculos baseado na comparação de valores e exibir os resultados no mostrador numérico luminoso. Aprendi a lidar com o troço e usei-o até quebrar o mecanismo de leitura dos cartões. As instruções eram mnemônicos introduzidos pelo teclado, cada um deles correspondendo a uma operação elementar. Em suma: eu programava em assembly e não sabia. Só descobri uma década depois.

Os grandes projetos que participei eram acompanhados pelas equipes técnicas dos clientes em reuniões com o time de projetistas. Por vezes eram sugeridas alterações visando melhorar isso ou aquilo. Algumas exigiam refazer páginas e páginas de cálculos, trabalho para dias ou semanas. Pois foi justamente nessa época que começaram a aparecer nas reuniões uns garotos recém saídos da adolescência, barbudos, de óculos, com um jeitão meio introvertido. Quando, no calor das discussões, alguém argumentava que tal ou qual alteração deveria ser evitada para não atrasar o cronograma do projeto, um dos garotos respeitosamente pedia a palavra e informava que isso não era problema: eles entregariam o projeto recalculado no dia seguinte.

No dia seguinte? Mas como? Era muita conta a ser refeita. Impossível! E na reunião do dia seguinte apareciam os garotos com os cálculos. Que mágica era aquela? Comecei a investigar e descobri que a mágica chamava-se planilha eletrônica.

Em agosto de 1981 a IBM havia lançado o IBM PC. Durante algum tempo ele foi pouco mais que um brinquedo caro: como a máquina até então não existia, não havia programas para ela. Quem quisesse, que desenvolvesse os seus. E por isso mesmo ela vinha com a linguagem de programação Basic gravada em ROM. Se, durante a inicialização, não fosse encontrado um sistema operacional no drive, era carregado o interpretador Basic da memória ROM para que você desenvolvesse seu próprio programa (e se não fosse encontrado o Basic em ROM, a máquina travava e exibia a mensagem de erro “NO ROM BASIC”; essa mensagem, perdida nas entranhas do micro, às vezes ainda aflora das profundezas do BIOS e tenho me divertido muito com a explicação que os “técnicos” modernos inventam para justificá-la: o último disse a um amigo que a máquina não inicializava porque faltava um “rom básico” no disco rígido).

Sem programas na praça, quem usava PC eram engenheiros, técnicos ou cientistas, as únicas categorias com conhecimento suficiente para desenvolver seus próprios programas. Gente “comum” não chegava nem perto. A coisa mudou com o aparecimento dos programas comerciais, que puseram a máquina ao alcance do grande público e fizeram as vendas dos PCs dispararem. Os mais populares eram os editores de texto, bancos de dados e planilhas eletrônicas. Mas os campeões eram as planilhas. Naqueles dias, chamavam-se VisiCalc, SuperCalc e, a mais popular de todas, Lotus 123, que naquela época ainda me parecia uma mistura de técnica com magia. Era com ela que os garotos mexiam em meus projetos. E mexiam melhor e mais depressa do que eu.

Foi então que me dei conta que aqueles meninos estavam invadindo minha praia. E se eu não tomasse alguma providência, logo perderia meu ganha-pão. Decidi, então, me interessar por computadores.

Naquele tempo a mentalidade da empresa em que trabalho era antediluviana e em seus escritórios não se admitia nada além do computador de grande porte, ao qual só tinham acesso meia dúzia de iluminados. Microcomputadores eram proibidos (parece incrível, mas é verdade). Mas como nosso escritório era longe da sede, um colega de mente mais arejada, Otavio Moreira de Assis, levou para lá sub-repticiamente seu próprio Unitron, um clone do Apple II, e convenceu o chefe a usá-lo nas tarefas administrativas e controle de obras. Foi ali que vi o primeiro disco rígido: uma trapizonga do tamanho de uma caixa de sapatos que zumbia irritantemente. Jamais esqueci a expressão de respeito, quase veneração, com que o Otávio apontava para o trambolho e dizia: “Aí nessa caixa cabem dez milhões de bytes”. Era um “winchester” externo de 10 Mb.

Foi o Otávio que me incentivou a usar o micro. Espertamente, mostrou-me que o bicho “sabia” jogar xadrez. Daí para a frente eu esperava ansioso pela hora do almoço, a única em que o micro estava disponível, e a despendia em furiosas partidas contra a máquina. Perdia mais que ganhava, mas fui fisgado inexoravelmente pela magia do computador.

O próximo passo foi inevitável: comprar meu próprio micro. O Unitron era limitado demais para minhas aspirações. O PC, muito caro. A opção foi o MSX, recém lançado na época, uma máquina de oito bits que aparentemente tinha grande futuro. Comprei o meu, um Expert da Gradiente, no início de 86, em pleno plano cruzado.

Minha relação com o MSX durou pouco. Não por minha culpa, muito pelo contrário. Eu mesmo estava cheio de boas intenções. Fiz curso de Basic, comprei todo tipo de badulaque que podia pendurar nele, desde drives de disquete (o bichinho usava um gravador cassete como meio de armazenamento) até um monitor (para ser usado no lugar da televisão, seu dispositivo de saída padrão), passando por expansão de memória. Em suma: tudo o que o mercado oferecia. Comprei centenas de programas e todos os livros que encontrei. Cheguei até a programar em assembly MSX depois de um curso com mestre Renato Degiovani. Ou seja: de minha parte, sobrou boa vontade. Pelo menos até novembro de 86 ao visitar o Japão, onde nasceu o padrão MSX.

Um parênteses: espero que, como ocorreu há alguns anos por uma interpretação equivocada de algo que escrevi, a brava tribo dos usuários do MSX não venha novamente a se desavir comigo pelo que será dito abaixo. Mas o fato ocorreu rigorosamente como descrito e não me cabe omiti-lo. Por outro lado, declaro mui solenemente meu profundo respeito e admiração por um denodado grupo de usuários que continua se dedicando a uma máquina que já não é fabricada industrialmente há mais de uma década mas que tem tal poder de sedução que, ainda hoje, fornece mais de treze mil retornos a uma pesquisa no Google feita apenas nas páginas em português com o termo “MSX”. Mas voltemos ao Japão...

Era uma viagem de trabalho, mas eu consegui uma tarde livre para visitar Akihabara, um bairro de Tóquio dedicado exclusivamente à eletrônica. Meu objetivo era garimpar novidades para MSX. Fui com um intérprete, naturalmente. Que enfrentava dificuldades para explicar aos vendedores das lojas de informática o que eu queria. E recebia de todos a mesma resposta: nada tinham para o MSX. Mas como era possível? Afinal, ali era a pátria do padrão!

Descobri a razão na seção de computadores de uma loja de departamentos onde, afinal, aflorou na boca do vendedor o primeiro sorriso de compreensão e a informação procurada: eu estava na seção errada. Mas se eu descesse dois andares... Desci e, de fato, me vi no próprio paraíso do MSX. Encontrei ali tudo o que eu poderia desejar, de teclados a modems para a maquininha. Mas havia algo de estranho no ambiente. Afinal, onde eu estava?

Na seção dos videogames. Em sua própria pátria, o MSX não era considerado um computador, era um videogame. Desisti das compras e na virada de 87, já de volta ao Brasil, batucava no teclado de meu primeiro PC: um XT com 512K de memória RAM e dois drives de disquete de 5” 1/4. Disco rígido nem pensar, que a grana não dava. Punha-se o disquete de inicialização no drive A e ligava-se a máquina para carregar o DOS 3.2. Depois, trocava-se o disquete pelo do programa que se pretendia usar, protegido contra gravação para não se gravar nele algum documento por engano, Para isso existia o drive B, onde havia sempre um disquete desprotegido. Bons tempos aqueles em que um sistema operacional inteiro cabia em um único disco de 360K. Hoje, só o CD de instalação de Win XP vem com mais de 500Mb...

Minha relação com o micro não era nada amistosa. Os comandos eram cabalísticos e nem sempre os resultados eram os esperados. Qualquer erro resultava na mensagem “Bad command of file name”, que não explicava coisa alguma e me deixava ainda mais confuso. Sem falar no sentimento de culpa que me assolava quando recebia a assustadora mensagem de “Fatal error”. Aquele “fatal” me fazia sentir como se tivesse matado alguma coisa sem ao menos saber o que.

Trabalhar com linha de comando era uma desgraça. No dia em que um dos poucos amigos que tinham alguma intimidade com o micro, o hoje micreiro emérito Paulo Wengorsky, me explicou com ar grave que “o comando FORMAT formata o disquete, mas se você digitar FORMAT /S ele faz um negócio diferente” eu beirei a loucura. Passei então a anotar cada comando e seus parâmetros em um caderno. Era minha cabala particular, uma coleção de palavras abstrusas, cada qual capaz de fazer a máquina perpetrar uma magia diferente. Não custou muito para perceber que aquilo não levaria a lugar algum. Ou eu aprendia a dominar a máquina ou ela me dominaria. E eu não sou homem de me deixar dominar por uma máquina.

Reagi da única maneira que conhecia: procurei em todas as fontes possíveis material de leitura sobre o PC e devorei tudo o que me caiu nas mãos. Li de tudo, livros, jornais, revistas, o diabo. Bastava a publicação mencionar a palavra byte para eu lê-la de cabo a rabo. Na época não havia muita coisa que prestasse, mas deu para aprender algo. O Mestre Supremo foi Peter Norton, com quem aprendi quase tudo o que sei sobre PC e DOS. A edição original do “Inside the IBM PC Revised and Enlarged” foi lida e relida até a exaustão. E, tempos depois, o “Peter Norton’s PC Programmers Bible” andou embaixo de meu braço como se fosse realmente a Bíblia. Outro que muito me ajudou foi John Dvorak, que anos depois me concedeu o privilégio de sua amizade pessoal. E assim aprendi a transitar sem medo na floresta do DOS e destrinchar seus mistérios.

Mas na máquina mesmo, eu tinha pavor de mexer. Achava que bastava abrir o gabinete para danificar algum circuito e fazer com que aquilo jamais voltasse a funcionar. Até o dia em que se defrontaram duas forças da natureza: meu medo e minha impaciência.

Se não caracterizasse a confissão de um crime eu diria que meu primeiro disco rígido, um trambolho do tamanho de um tijolo com capacidade de 40 Mb e que me custou seiscentos dólares, quase o preço do micro, veio de Puerto Stroessner, atual Cidudad del Este, no largo bolso de um casaco nos idos de 87, em plena reserva de mercado. Só não digo porque não sei em quanto tempo contrabando prescreve. Mas o fato é que cheguei em uma sexta-feira à noite. Esperar até segunda para conseguir um técnico que instalasse o bicho era uma tortura. Com o HD veio um manual de instalação. Depois de lê-lo vezes sem conta, deixei a impaciência vencer o medo, abri o micro e instalei o drive.

Não funcionou. O manual não mencionava a necessidade de ativar a partição primária, problema resolvido na segunda-feira depois de uma consulta a um técnico. Mas a experiência foi tão instigante que minha máquina seguinte, um 286, foi montada por mim mesmo. É claro que desta vez não me meti a besta de confiar em manuais: fiz um curso de montagem. E como naqueles dias aqui no Rio não havia nenhum, gastei uma semana das férias em São Paulo aprendendo a montar micro. Devo muito do que sei à paciência infinita e excelente didática de Mestre Antonio Rodrigues, que me desasnou no que toca a hardware. Daí para a frente, nunca mais comprei micro. Todos foram montados. Hoje mesmo, na bancada de minha oficina doméstica, uma placa-mãe Soyo aguarda apenas eu terminar esse artigo para se abancar no gabinete dessa máquina que vos fala, juntamente com uma CPU decente.

Meu interesse por hardware me levou a procurar aprender mais sobre o assunto. E a melhor maneira de aprender é ensinando. Hoje leciono a disciplina Arquitetura de Computadores em duas universidades (além de Tratamento de Esgotos em uma terceira; lecionar, além de um prazer, e a forma mais eficaz de se manter atualizado sobre os assuntos que nos apaixonam; além disso, sempre achei que aqueles que detêm algum conhecimento e foram abençoados pela natureza com o dom de transmiti-lo, têm a obrigação moral de compartilhá-lo).

Já sabendo alguma coisa sobre sistema operacional e hardware, faltava programar. Decidi fazer um curso de linguagem C. Achei complicado e abandonei. Mas tive a sorte de pouco depois encontrar uma preciosidade: um livro sobre programação assembly para PC que ensinava a linguagem partindo do zero até criar um programa. Jamais, em toda minha vida, encontrei algo tão bem escrito, tão simples, direto e didático. Já não lembro seu nome. Dei-o de presente a um amigo na vã esperança de comprar outro exemplar. Nunca mais o encontrei. Da autora, lembro apenas que era uma mulher, o que mais uma vez desmente a idéia machista que “computador não é coisa para mulher”.

Com aquele livro, com o manual do Borland Turbo Assembler e com as lembranças do velho curso de assembly para MSX acabei por destrinchar o assembly. E descobri a razão de ter achado o C tão complicado: desconhecimento da arquitetura interna do processador 8086, que o assembly me obrigou a conhecer. Daí em diante minha leitura predileta passou a ser sobre programação. Em 89 eu já programava razoavelmente em C e assembly. O problema é que programar não é como andar de bicicleta, que nunca se “desaprende”. O programador que não se mantiver em constante atividade perde o pique. As linguagens novas aparecem, os ambientes de programação mudam, e babau... Hoje, nas novas linguagens “visuais”, não consigo sequer programar um “Alô mundo”. Mas o conhecimento adquirido naqueles dias até hoje me ajuda a entender certos conceitos e a não passar vergonha em palestras técnicas.

Mais ou menos na mesma época surgiram os BBS. Eram gratuitos. Para quem não sabe, foram os precursores da Internet. Um indivíduo completamente doido gastava uma nota preta para comprar um micro com um formidável disco rígido e algumas linhas telefônicas (que funcionavam tão mal quanto as de hoje, mas custavam muito mais caro) para colocar tudo isso à disposição de algumas centenas de outros indivíduos igualmente doidos que se conectavam ao micro do primeiro através de modems e trocavam programas e mensagens entre si e entre todos. Fui membro do CentroIn, HotLine e Unikey (deste, ainda sou: meu sítio está hospedado lá). Uma turma de malucos. Mas nas reuniões periódicas do grupo na Praia do Leme fiz alguns de meus melhores amigos. Não vou citar todos, que sempre faltará algum para dever desculpas. Mas para dar uma idéia do quilate de quem por lá se via, cito o Grande Mestre Júlio Botelho, um dos últimos representantes da quase extinta espécie dos gentlemen.

Em todo aquele período, tinha uma coisa que muito me incomodava: a imensa dificuldade de encontrar informações sobre computadores em linguagem clara e simples. Com raríssimas exceções, quem escrevia sobre informática ou não sabia escrever ou não sabia informática. Particularmente irritantes eram os artigos que abusavam do jargão e terminologia pseudo-técnica como “estartar” e “printar”, cuja principal finalidade não era transmitir conhecimento mas apenas alardear o saber do autor. Um saber no mais das vezes falso, já que quem realmente sabe, não “enrola” (só esconde conhecimento quem corre o risco de, cedendo o pouco que tem, acabar sem nenhum). Em suma: quem sabia, não ensinava e quem tentava ensinar, geralmente não sabia.

O resultado disso é que naquela época quem tinha dúvidas sobre computadores não tinha onde dirimi-las. Para se conseguir formar uma idéia clara sobre uma questão era preciso garimpar a informação aos pedaços, neste e naquele artigo, até se conseguir uma perspectiva razoável. Chegava-se à resposta, quando se chegava, juntando as migalhas de informação colhidas aqui e ali, na base da dedução, já que ninguém fornecia o conhecimento inteiro. Na imprensa do Rio não havia cadernos de informática. Eu lia os de São Paulo, mas seu enfoque era predominantemente corporativo. As revistas de informática não ficavam muito atrás. Em suma: ninguém se interessava pelo pobre micreiro doméstico, que não tinha a quem recorrer.

Havia uma exceção. Era uma coluna de informática chamada Circuito Integrado. Saía às segundas nas páginas de economia do Jornal do Brasil. E toda segunda-feira, a primeira coisa que eu fazia ao acordar era pegar o jornal na soleira da porta, tomar um café, voltar para a cama e saborear a coluna. Só então me levantava para começar a semana.

Quem a escrevia era Cora Rónai, hoje editora desse caderninho que vos fala. O que eu mais admirava nela, além da linguagem clara e coloquial, era a coragem de dizer “não sei”. Quando Cora encucava com um problema, simplesmente escrevia sobre ele e perguntava se alguém tinha a solução.

Um dia calhou dela perguntar algo que eu sabia. Eu nunca fui de mandar cartas para jornal mas achei que aquela era uma boa oportunidade para retribuir uma pequena parte daquilo que vinha aprendendo com ela. E escrevi uma “carta para a redação”. Pois não é que para meu orgulho e espanto um trecho foi publicado na coluna?

Daí para a frente a coisa ficou mais ou menos rotineira. De vez em vez eu escrevia para Cora comentando algo que lia na coluna ou que achava interesse e de quando em quando Cora citava alguma coisa ou me telefonava. E assim se passaram muitos meses, sem nenhum contato meu com a Cora além de cartas de cá para lá e telefonemas de lá para cá.

Um belo dia, no início de 91, Cora simplesmente se despediu da coluna e sumiu na poeira. Como eu não tinha outra forma de me comunicar com ela senão escrevendo para a redação onde ela não mais estava, me senti órfão e abandonado. E assim fiquei semanas. Até Cora telefonar e informar que havia sido convidada para editar um caderno sobre informática no Globo. Ora, que bom, respondi, assim eu poderia continuar lendo sua coluna. Lendo nada, retrucou Cora. Ela queria é que eu escrevesse. E com o telefonema veio o convite para assinar uma coluna no novo caderno.

Minha primeira reação foi de orgulho. Depois de medo. Finalmente, de bom senso: recusei. Aleguei que de colunista de informática eu não tinha nem cacoete. Faltava experiência, faltava conhecimento, faltava tudo. Cora insistiu. Disse que a coluna seria dirigida ao micreiro principiante, explicando como o micro funcionava e como resolver os problemas mais freqüentes, exatamente aquilo que eu vivia reclamando que faltava na imprensa carioca (lembro aos coleguinhas que no Rio ainda não havia caderno de informática algum). E bastaria manter a coluna no mesmo estilo usado nas cartas que escrevia para ela. Depois de alguma insistência da parte dela e pouca relutância da minha, o bom-senso dobrou-se à vaidade e aceitei. Mas sob uma condição: se a qualquer momento sua experiência indicasse que aquilo não estava dando certo, que me dissesse sem rodeios que eu, discretamente, enfiaria minha viola no saco e recolher-me-ia à própria insignificância. Já lá se vão onze anos. Ou ela não me disse ou, se disse, me fiz de desentendido. O fato é que continuo por aqui.

Assim surgiu minha primeira coluna, a Trilha Zero. Mas como assiná-la? Para um profissional de área tão diversa, usar o próprio nome em uma coluna sobre informática não seria bom para os negócios. Por outro lado, cinqüentão, eu já tinha passado da idade de usar pseudônimo. Foi então que dei-me conta que carregava desde o nascimento um nome novinho em folha. Aquele sobrenome do meio, o “Piropo” da família de D. Eulina, estava praticamente sem uso, já que até então eu sempre assinava “Benito P. Da-Rin”. E quase ninguém sabia o significado daquele “P”. Então, por que não usá-lo à guisa de pseudônimo acompanhado da inicial de meu primeiro nome? Assim nasceu B. Piropo.

Daí para a frente, vocês conhecem a história. B. Piropo procurou fazer aquilo que sempre lamentou não encontrar quem fizesse: explicar, em linguagem o mais possível despida de tecnicismos, como funcionavam as coisas dentro de um computador, o porquê dos problemas, qual sua natureza e como resolvê-los. No início, escrevia séries de colunas destrinchando cada tópico, de software a hardware: sistema operacional, memórias, discos rígidos, conteúdo dos arquivos de configuração, novos dispositivos e tecnologias. Falou de CD-ROM (quando era novidade), USB, ATA e EIDE, ATX, uso de fitas para cópias de segurança, o que eram interrupções, para que serve o Registro do Windows e coisas que tais. Houve até uma série dando dicas sobre como escolher uma máquina e seus componentes. De 91 a 92 assinou a seção “Memória Virtual”, dedicada a definir termos e expressões usadas em informática. Em 92 e 93, a seção “Feedback”, com respostas a dúvidas de leitores (que existe até hoje em seu sítio na Internet). Em 94 passou a assinar uma segunda coluna, Microcosmo, essa bastante didática, com o objetivo específico de ensinar o funcionamento do micro (a idéia era transformá-la em um livro do tipo “como funcionam as coisas” mas a coluna foi interrompida em 96). Todas as colunas, desde a primeira, além dos artigos avulsos escritos por B. Piropo aqui e acolá, permanecem disponíveis na seção Escritos de seu sítio, em <www.bpiropo.com.br>. Além de outras seções, como Dicas e Respostas. Sugiro uma visita.

Em 95 a Internet explodiu e fez mudar o perfil do usuário de micro – e portanto do leitor do caderninho. As pessoas ansiosas em destrinchar as entranhas da máquina foram substituídas pelas que apenas queriam usá-la sem percalços. Com a Internet o computador passou a ser um eletrodoméstico como outro qualquer. Quem vê televisão não quer saber como ela funciona. Mas se a imagem oscila ou perde a cor, quer saber como reverter a situação. Isso fez mudar também o estilo do caderno, que se voltou para esse novo usuário. A Trilha Zero morreu, surgiu no lugar dela a Coluna do Piropo, que passou a evitar temas excessivamente técnicos. Nasceu ainda Dica do Piropo, mais voltada para o “como usar” que para o “como funciona”. Mas B. Piropo continua por aqui. E já lá se vão quase onze anos...

Com o nascimento do B. Piropo, minha vida mudou. É tal o poder da imprensa que ele, em menos de um ano e sem nem sequer trabalhar na área, passou a ser mais conhecido e respeitado como “sumidade” no campo da informática que eu na engenharia, à qual dediquei mais de quarenta anos de trabalho e estudo, com dezenas de trabalhos publicados em congressos e revistas técnicas, consultor internacional e respeitado professor universitário. Parte de minha vida passou a ser comandada por ele. Freqüenta feiras e eventos no país e no exterior (e me leva com ele), busca informações técnicas diretamente nas fontes (e é atendido), conquista novos amigos no novo universo que se abriu para ele (que compartilha comigo), sabe com antecedência dos principais lançamentos da indústria, em suma: tornou-se uma pessoa pública. Escreveu dois livros, chegou a manter um programa no rádio (Informática CBN, um boletim sobre informática na Rádio CBN que agora transformou-se no Disque Piropo, transmitido por telefone e sobre o qual você encontra informações em <www.disquepiropo.com.br>) e a fazer comentários sobre informática na televisão (um programa na extinta rede Manchete). Recebe convites para fazer palestras sobre informática e os aceita com prazer. E me obrigou a dedicar a ele uma boa parte de minha própria vida.

Não reclamo. Pelo contrario, agradeço. A B. Piropo, a Peter Norton e os demais que lhe ensinaram as coisas que ele sabe e gosta de compartilhar e, sobretudo, a Cora Rónai, que o convenceu a escrever essas bobagens que vocês estão lendo. Sem ela, não haveria B. Piropo. Além, evidentemente, do maior e mais fundo agradecimento: o dirigido a vocês, que complacentemente lêem o que ele escreve, já que são os leitores que justificam a existência dos colunistas.

Se eu antes já não reclamava da vida, agora reclamo menos ainda. Com o nascimento do B. Piropo, ao contrário do que muita gente pensa, não fiquei rico (a quem acha que escrever em jornal torna alguém rico e famoso, garanto que está exatamente 50 porcento equivocado). Mas, sem nenhuma sombra de dúvida, minha vida ficou muito, muitíssimo, infinitamente mais divertida.

Por tudo isso, mais uma vez, obrigado.

Eng. Benito P. Da-Rin